De 2012 a 2022, o crescimento de pessoas em situação de rua chegou a 211%, aponta pesquisa inédita do Ipea
Porto Velho, RO - Na quarta-feira, o armador de obras Silvio Sandro de Araújo usou o pouco dinheiro para comprar uma passagem de ônibus de Campos de Goytacazes, onde sempre viveu, para o Rio. Desiludido com uma briga com a mulher e a falta de oportunidades de emprego, decidiu tentar a sorte na capital do estado. Na primeira noite, ficou em um hotel no Centro. Mas na tarde seguinte, sem dinheiro, pediu um abrigo a funcionários da Secretaria Municipal de Assistência Social na Praça da Cruz Vermelha, ponto de moradores de rua.
A trajetória de Araújo reflete um fenômeno que vem crescendo no país. De acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população em situação de rua no Brasil é de 281.472 pessoas, um aumento de 38% no período da pandemia (de 2019 a 2022). Considerando a última década, a evolução é ainda mais impactante: 211%, muito acima da expansão de toda a população brasileira (11%).
— Decidi vir para o Rio atrás de emprego, porque lá (em Campos) está ruim — explicou Araújo, que não tem carteira assinada desde 2016 e é registrado no Cadastro Único (CadÚnico), o que lhe garante acesso aos programas sociais. — Ontem consegui pagar um quarto, mas agora estou tentando um abrigo. É a primeira vez que passo por essa situação. Se conseguir emprego, volto a Campos para buscar minha esposa.
Apesar da Política Nacional Para a População em Situação de Rua, de 2009, ter anunciado um censo dos sem-teto, o levantamento oficial nunca foi feito. Para chegar ao número estimado na pesquisa, o pesquisador do Ipea Marco Antônio Carvalho Natalino reuniu dados do Censo do Sistema Único de Assistência Social (Suas) de 2021, o CadÚnico de julho (último disponível) e variáveis socioeconômicas como taxas municipais de pobreza e de urbanização.
Veja a evolução dos números da população em situação de rua no Brasil
2012: 90.480
2014: 106.650
2016: 138.785
2018: 184.749
2019: 204.660
2020: 214. 451
2021: 232.147
2022: 281.472
De acordo com os cálculos, em 2019 o Brasil possuía 204.660 moradores de rua, número que saltou para 281.472 neste ano (em 2012, eram 90.480). O que torna visível, explica Natalino, os efeitos da pandemia.
— São três os fatores principais que explicam a população em situação de rua. O primeiro é o econômico, que inclui a pobreza, acesso à moradia e poucas oportunidades no mercado de trabalho por baixa qualificação. O segundo é o social: a perda de vínculo familiar e de rede de contato de apoio, que segura a pessoa em situação de dificuldade. E em terceiro, a questão das compulsões e adicção. Na pandemia, esses três fatores se agravaram — afirma Natalino.
O pesquisador acrescenta que levantamentos mais precisos dependem de dados dos municípios, mas atualmente só cerca de 2 mil prefeituras, de um total de 5.500, fornecem essas informações. O IBGE nunca conseguiu aplicar esse tipo de pesquisa, e os estudos que existem muitas vezes não têm metodologias comparáveis.
— A gente só mede o que o Estado consegue ver. Ainda há muito a avançar — diz Natalino. — A contagem dessa população é importante para dar acesso à cidadania, faz parte de uma política pública para se aprimorar o atendimento aos mais vulneráveis.
Wallace Gonçalves admitiu que sofre com a dependência química e pede melhorias nos abrigos: ' humilhante ' — Foto: Roberto Moreyra
Pintor automotivo, Wallace Gonçalves da Cunha, de 43 anos, foi para a rua em 2021. Dependente químico há 20 anos, ele passou por casas de recuperação, onde reconhece que colheu bons resultados. Mas admite que teve uma recaída em dezembro passado, após a morte do pai, e passou a dormir perto do Hospital Souza Aguiar, no Centro.
— Só gastava dinheiro com mulher e drogas — conta Gonçalves, que voltou para Vitória, onde nasceu, há dois meses, mas retornou ao Rio para recuperar os documentos que foram perdidos. — Dormir na rua não é bom, o ambiente é agressivo. Se você tem um cigarro e uma cachaça para oferecer até é bem tratado. E os abrigos são péssimos. É humilhante.
O padre Julio Lancelott, que trabalha com moradores de rua em São Paulo, diz que o aumento dessa população durante a pandemia só foi semelhante ao que ocorreu após o Plano Collor. Foi um agravamento do que já vinha acontecendo com a crise econômica iniciada anos antes, e o resultado foram novos perfis nas ruas, afirma.
— Vi mais grupos familiares inteiros, mais mulheres, crianças e jovens. Se logo no início da pandemia tivessem tomado medidas de proteção social mais rapidamente, não teríamos todo esse aumento — diz Lancellotti, que defende uma renda básica universal lamenta o aumento recente do desprezo pelos pobres. — Na mesma medida em que a população de rua aumentou, cresceu a rejeição. As pessoas ficaram mais incomodadas.
Outro dado importante revelado pela pesquisa é que 31% da população em situação de rua não está no CadÚnico. Além de agravar a invisibilidade desses indivíduos, são menos pessoas alcançadas por programas sociais e menos recursos transferidos do governo federal para os municípios.
— Gera um efeito de bola de neve. Menos recurso, menos possibilidade de contratar equipes, de ir a campo fazer atendimento — explica André Dias, Coordenador do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua/POLOS-UFM, que colaborou para o cálculo desse universo.
Dias aponta que, em 2021, o percentual dessas pessoas fora do CadÚnico chegou a 47%, explicado pela paralisação de muitos serviços durante a pandemia e pela chegada de pessoas de novo perfil à situação de rua. Há dois meses, o Observatório também divulgou seu próprio levantamento, que deu um número de 213.371 de população de rua, quantidade menor porque se baseia apenas no CadÚnico, portanto menos dados que o Ipea. Desse total, 40% estava no estado de São Paulo (48.675). Além disso, 87% das pessoas são do sexo masculino, 47% têm o ensino fundamental incompleto, 11% são analfabetos e 68% negros, segundo a pesquisa.
A cada 10 pessoas em situação de rua, sete são negras. Estamos falando de fenômeno social complexo que tem cor. Desde a abolição da escravatura nunca foram pensadas políticas públicas estruturantes para a população negra no Brasil. A origem tem relação direta com o racismo estrutural e séculos de escravidão — explica o pesquisador, que destaca a necessidade de medidas de reparação histórica e de programas de habitação, educação e renda e trabalho.
Presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Leo Pinho diz que, na última década, não houve aumento de custeio para nenhuma política voltada à população de rua no SUS. Ele considerou os recursos para Consultórios de rua, Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e unidades de acolhimento.
— É um projeto de desfinanciamento dessas políticas públicas — afirma Pinho, que entregou ao governo de transição resolução do Conselho que destaca a necessidade de uma política de "moradia primeiro", estratégia adotada no exterior e que garante acesso à habitação transitória ou definitiva . — Aumento de mais de 200% da população de rua em uma década mostra que a política nacional não foi implementada. Esse levantamento mostrou algo que estava evidente para quem nós no dia a dia.
Outra organização envolvida com a causa, o Instituto de Direitos Humanos da População em Situação de Rua (Inrua) lançou recentemente um guia que explica a importância do projeto de moradia primeiro.
— Temos grande expectativa que essa política saia de fato do papel e se expanda o máximo possível, funcionando de fomra definitiva no Brasil, com orçamento específico, e que garanta que o maior número de pessoas possível possa superar a situação de rua. É uma alternativa que se mostrou eficaz no mundo inteiro, mais eficiente economicamente — diz Tomás Henrique de Azevedo, diretor do Inrua.
Fonte: O GLOBO
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