Com maioria de homens, grupo cresceu durante o isolamento da pandemia; jogos retrôs, Legos e heróis colecionáveis estão entre os itens mais desejados

Espalhados por estantes e mais de três cômodos da casa com arquitetura modernista em Cotia, na Região Metropolitana de São Paulo, o escritor Sergio Campos guarda um arsenal de brinquedos brasileiros fabricados entre os anos 1920 e 1970. 

No auge de seus 61 anos, ele é o maior colecionador de obras centenárias nacionais: são 3 mil itens, de bonecas Susi a carrinhos de bate-bate. Sim, aqueles dos parques de diversões, que qualquer adulto guarda em suas melhores memórias da infância.

Sérgio é um kidult. Não sabe o que é? São adultos que preservam o gosto por brinquedos e que têm turbinado um mercado que vive de fantasias e de paixões que nunca morrem. Aos 18 anos, ele, que foi de uma família com poucos recursos, começou a trajetória que o levaria a se tornar um aficionado. Hoje, dá aula sobre o assunto, que mais do que um hobby, é uma vida inteira de histórias.

— A indústria de brinquedos no Brasil teve início nos anos 1920, com fábricas de fundo de quintal. Em 1937, chegou a família que veio a fundar a Estrela, uma das maiores marcas que temos ainda hoje. Isso tudo me fascina, porque os brinquedos, por um bom tempo, foram apenas para crianças ricas. 

Decidi parar nos anos 1970 porque com a globalização as características ficaram menos abrasileiradas — conta o escritor, que já expôs seu acervo no Museu da Casa Brasileira e passou a estudar como restaurar brinquedos e preservá-los da ação do sol, dos cupins e, claro, do tempo.

Como Sérgio, os kidults formam um grupo que tem um quê de nerd, e que cresceu na pandemia. O termo americano para “adultos crianças” ganha força no mercado. Uma pesquisa divulgada este mês pela consultoria The NPD Group mostra que, entre os 12 países mais importantes do mundo, inclusive o Brasil, a venda de brinquedos cresceu 22% no ano passado, quando comparada a 2019.

Dos 29 subsegmentos, os que mais cresceram foram pelúcia (27%), brinquedos diversos (18%), cartas colecionáveis (18%) e figuras de ação colecionáveis, como super-heróis (18%). Dados da empresa Ri Happy apontam que durante o isolamento imposto pela Covid-19 houve um crescimento de adultos brincando sozinhos como forma de distração. 

A tendência mundial impulsionou a venda de jogos retrôs, além de lançamento de Legos e heróis colecionáveis para adultos. Os kidults são majoritariamente homens, de todas as idades e classes sociais.

Terapia e afeto

O professor do departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense Carlos Henrique Juvêncio, que pesquisa o colecionismo, explica que o ser humano naturalmente tem o hábito de colecionar. 

De acordo com Juvêncio, a prática funciona como uma terapia, onde o fascínio pelo brinquedo é compartilhado na internet e em lojas, muitas de bairros, onde se encontram em busca de novos itens para a coleção.

— A coleção é saudável, e diferente do perfil do acumulador, que não tem propósito nas coisas que guarda. Uma coleção é pensada pela história, pelos afetos, aproxima o pai do filho e permite que você volte ao passado no presente. 

Tanto que, quando o colecionador morre, morre junto a coleção, porque ninguém é capaz de interpretar a identidade que a pessoa, em sua singularidade, aplicou àqueles objetos — aponta o pesquisador.

O vendedor de brinquedos colecionáveis João Roberto Gazzola está há 28 anos no ramo, dos quais 15 em uma loja de 27 metros quadrados no coração da Praça da República, em São Paulo, onde milhares de pessoas passam todos os dias. 

Gazzola começou colocando para jogo seus próprios brinquedos, como uma forma de complementar a renda. Virou um sucesso de vendas, com crescimento de 70% na quarentena. Embora o “adulto criança” em geral tenha maior poder socioeconômico, João Roberto sustenta que o hobby também está acessível a quem não tem muito dinheiro.

— Aqui os (brinquedos) que mais saem são os super-heróis e autoramas (antigas pistas de corrida, que foram febre dos anos 1960 a 1980) — diz, estimando que os valores dos itens ficam entre R$ 10 e R$ 5 mil.

Alessandro Zuza, de 48 anos, largou o emprego de jornalista para se dedicar a uma galeria de brinquedos antigos também na Praça da República. Apenas na loja, tem um arsenal de 600 itens à venda. 

O sonho de se dedicar às relíquias se iniciou ainda criança, quando desejava brincar com bonecas, mas sofria repressão. Uma Barbie escondida debaixo da cama, aos 14 anos, foi o ponto de partida para um cômodo com mais de 300 peças, consideradas sua poupança.

— A Barbie foi lançada em 1959 e, apesar dos preconceitos, desde 1962 são vendidas Barbies negras nos EUA. Mesmo com toda crítica ao padrão de beleza, a Barbie, ao contrário das bonecas que se parecem bebês, veio para representar a mulher bem-sucedida, que usa roupa curta, com brilho, dirige e tem várias profissões — explica.

Hoje, o principal meio de venda de Alessandro são sites de leilões. Neles, um único item que seria vendido na loja por R$ 5 mil pode atingir preços dez vezes maiores.

Boneco Faria Limer

Colecionar também comunica um jeito de ser e pode ajudar a enfrentar preconceitos. Com uma coleção de mais de 50 bonecas da Monster High — franquia de fashion dolls inspirada em filhos de monstros clássicos, como o Drácula — o designer Gabriel Cavalcanti, de 26 anos, divide a obsessão pelas peças com o namorado.

 Juntos, passam horas garimpando na internet. Gabriel admite que chega a gastar um terço do salário para alimentar a paixão. Uma doll pode chegar a mais de R$ 500.

— A sociedade coloca que menino não brinca de boneca, e eu sempre fui apaixonado. E as pessoas, quando veem, também ficam. Eu não me importo que mexam, mas é preciso cuidado porque eu as trato com muito carinho. Limpo, arrumo cabelo, faço penteados, tiro manchas — relata o designer.

A Corbe Toys surfou na onda com brinquedos para adultos com apelo político. As peças, com pouco mais de 3 cm, viralizaram no ano passado. Os mais famosos são o Faria Limer, alusão aos jovens executivos paulistas do mercado financeiro, o Fantasma do Comunismo e o Patriota do Caminhão.

— Nós focamos na realidade para provocar a pessoa a pensar. Algumas pessoas vão gostar, outras vão rir. mas todas vão racionalizar e se identificar — defende Henrique Nogueira, ao lado do sócio Luís Aizcorbe.


Fonte: O GLOBO