Recurso foi movido pela defesa em instância superior após negativa de habeas corpus na Justiça Federal, onde o caso corre sob sigilo

O Superior Tribunal de Justiça negou, em decisão publicada nesta segunda-feira, mais um pedido de habeas corpus feito pela defesa da falsa guru Katiuscia Torres Soares, conhecida como Kat Torres, de 34 anos, que está presa no Complexo Penitenciário Santo Expedito, em Bangu, no Rio de Janeiro, acusada de promover redução a condição análoga à escravidão e tráfico de pessoas para fins de exploração sexual nos Estados Unidos. 

É a segunda vez este mês que a autodeclarada "bruxa" tem a liberdade rejeitada. Após indeferimento por parte da Justiça Federal, o advogado Rodrigo Alves da Silva Menezes resolveu recorrer à instância superior, mas o STJ também decidiu mantê-la na cadeia, entendendo que não há razão, neste momento, para interferir no processo.

Na ação movida, a defesa pede alvará de soltura alegando incompetência do Juízo da 10ª Vara Criminal Federal para julgar o caso e solicita que o STJ torne nula a decisão pela prisão preventiva de Katiuscia após o recebimento da denúncia protocolada pelo Ministério Público Federal. O ministro Rogério Schietti, no entanto, afirma não ter notado qualquer ilegalidade por parte do juízo federal.

"De acordo com o explicitado na Constituição Federal, não compete a este Superior Tribunal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão denegatória de liminar, por desembargador, antes de prévio pronunciamento do órgão colegiado de segundo grau", introduziu Schietti.

"De fato, a um primeiro olhar, não se identifica a apontada ilegalidade, diante da ausência de flagrante ilegalidade, além da necessidade da vinda das informações para esclarecimentos e posterior decisão de mérito. Tais elementos afastam, em juízo prelibatório, a plausibilidade do direito tido por violado. Assim, não identifico ilegalidade manifesta no ato, fazendo a ressalva de que não preclui o exame mais acurado da matéria, em eventual impetração que venha a ser aforada já a partir da decisão colegiada do tribunal competente", conclui.

Procurado, o advogado Rodrigo Alves da Silva Menezes ainda não se pronunciou sobre a decisão. O processo corre sob sigilo. A expectativa é de que as audiências do caso comecem esta semana na Justiça Federal.

'Esconde as notinhas de 1 dólar': a denúncia do MPF

Na denúncia em que o Ministério Público Federal justifica a prisão de Kat Torres, a Procuradoria revela, em trechos obtidos com exclusividade pelo GLOBO, a rotina cruel a que a acusada submetia suas vítimas. 

No Texas, uma das jovens aliciadas por Kat Torres, de 26 anos, teria sido coagida a trabalhar mais de 13 horas por dia num strip club (clube noturno), onde começava a se apresentar ainda de manhã. Para preservá-la, ela será identificada apenas como D. A guru é acusada de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual nos Estados Unidos.

Com base nos depoimentos obtidos pela Procuradoria, Kat Torres, após conseguir a confiança de D., passou a explorar suas fragilidades, usando seus supostos poderes de "bruxa". A jovem era manipulada e coagida a cumprir as ordens da acusada.

Contra a vontade dos pais e colegas próximos, a vítima largou um emprego fixo que tinha na Alemanha e se mudou para o Texas, em abril do ano passado, para passar por uma espécie de "iniciação" na casa de Kat. Já na primeira semana, foi forçada a faxinar e cozinhar para Torres, além de fazer o "atendimento" aos clientes da falsa guru, como uma espécie de secretária. 

Também foi ordenada a cortar contato com parentes e amigos e a distanciá-los. A exploração, pouco a pouco, foi se tornando mais grave.

O MPF narra que, até o dia 2 de novembro de 2022, Kat Torres "aliciou, alojou e acolheu a jovem brasileira D. mediante fraude, "com a finalidade de submetê-la a trabalho em condições análogas a de escravo e a qualquer tipo de servidão e de exploração sexual, prevalecendo-se de relações de coabitação e hospitalidade", e sob "jornada exaustiva e condições degradantes". 

Dizendo estar falando através do que ela chamava de "Voz" – como se fosse a entidade da seita criada por ela –, a ex-modelo teria submetido a vítima a uma rotina extenuante em clubes de strip que começava às 10h da manhã e ia até, pelo menos, até as 23h — sem nenhum tipo de descanso. O dinheiro arrecadado era todo entregue à falsa guru. 

Uma conversa por Whatsapp mostra a preocupação de Katiuscia para que o lucro fosse entregue e escondido do namorado dela, Zachary Menkin.

"Esconde então aí a grana de novo pro Zach não ver as notinhas de 1 (dólar) rsss", diz Kat a uma das vítimas. "A D tá conseguindo trocar lá agora".

Nesse período, de acordo com a denúncia, Katiuscia obrigava que outra vítima mantida sob seu poder, e testemunha no inquérito, recolhesse os pagamentos e gorjetas obtidos através da exploração sexual de D., contasse as notas e as depositasse em banco. Desta forma, todo o montante era integralmente entregue à guru.

Além da exploração nos clubes de striptease, D. também passou a ser obrigada por Kat Torres a se prostituir, de acordo com a acusação. Fotos e contatos seus foram colocados em sites de "acompanhantes", como o Models World, onde Katiuscia a apresentava como "Mulher inesquecível que fará seus sonhos se tornarem realidade". 

Ela era identificada pelo nome de "Giovanna Dancer" e os "serviços" oferecidos ajudaram a acusação a dimensionar a gravidade da situação: acompanhante, fetiches e fantasias e massagem; disponível para todos os públicos: "casais, grupos, homens, transexuais e mulheres".

Bruxaria, au pair, dependência emocional: o modus operandi da 'bruxa'

  • Em 2017, Kat Torres publica o livro “A voz: uma história de superação, crescimento espiritual e felicidade". Em março do mesmo ano, divulga o livro em entrevista a Amaury Jr., onde diz que "a voz" é "como a voz de Deus, de anjos ou de alienígenas". Afirma, ainda, que dá consultas por Skype a seguidoras sobre como ganhar dinheiro ou obter sucesso em relacionamentos amorosos.
  • Através das consultas individuais, oferecidas em um site e nas redes sociais, com centenas de milhares de seguidores, ela, segundo o MPF, passava a tomar conhecimento dos problemas das "clientes", dava orientações e depois passava "exercícios" — vários, segundo testemunhas, retirados de páginas já existentes na internet.
  • Ganhando a confiança e conhecendo suas fraquezas, manipulava as clientes psicologicamente, afastando-as de pessoas próximas a elas, de atividades que exercessem, da cidade em que moravam, a pretexto de assim determinar “a voz” ou “a energia”.
  • Chegou a orientar o afastamento das vítimas de suas famílias, amigos, a ruptura de relacionamentos amorosos, inclusive casamentos, o abandono de tratamentos psicológicos ou psiquiátricos; o abandono de cursos universitários; a saída da cidade natal; entre outras condutas, que praticamente isolavam e fragilizavam as vítimas, as quais passavam a praticamente depender psicologicamente dela.
  • Estimulava suas clientes a acompanhar e interagir nas lives do Instagram. Nestes vídeos, ou nas consultas, dizia às clientes que fossem residir com ela nos EUA, afirmando que lá elas teriam tudo aquilo que almejavam.
  • Pelo menos a partir de 2021, passou também a prestar o que chamava de serviços de “bruxaria”, para os quais cobrava valores a partir de 800 dólares.
  • Quando sentia que a cliente já acreditava piamente nela, aliciava-a diretamente para residir nos Estados Unidos, com a finalidade de submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; submetê-la a qualquer tipo de servidão ou exploração sexual.
  • Indicava às vítimas que não tivessem recursos ou visto de turista, que tirassem visto como au pair, para depois conviver com ela. Para que a pessoa pudesse permanecer mais tempo lá, propunha “encontrar um marido rico.”


Fonte: O GLOBO