Pessoas que fizeram parte de instituição do guru Ravi Shankar dizem que dinâmicas envolviam humilhações e pedir esmola na rua, fantasiados de sem-teto; eles querem reparação por danos morais
Deprimido com o fim de um noivado de sete anos, D.P. foi bater na porta da Arte de Viver, que ensina filosofia indiana em 156 países. Ele descobriu que a meditação acalmava sua mente e, ao longo de uma década, passou de frequentador dos cursos a coordenador-administrativo da unidade do Rio de Janeiro. Em meados do ano passado, a instituição foi denunciada por mulheres que alegaram ter sofrido abusos sexuais. A descoberta foi um “gatilho” que levou D., e outros 15 ex-voluntários e funcionários da obra do guru Ravi Shankar a entrarem com ações trabalhistas e cíveis contra a ADV.
Entre outras coisas, os ex-funcionários — alguns sob contrato e outros de graça, de acordo com os autos — pedem reparação por danos morais. Eles dizem que sofriam humilhações com dinâmicas que teriam como objetivo fortalecê-los espiritualmente. No método da “cadeira elétrica”, por exemplo, eles afirmam que ficavam sentados ouvindo xingamentos insuportáveis para testar a resiliência do grupo. Era comum também, de acordo com as acusações, exigir que os seguidores pedissem esmolas nas ruas.
— Ninguém te ama, corrupto, criminoso, gordo, feio, triste, burro, sonso, sujo, arrogante, falso — enumera D.P., hoje com 40 anos. — A gente começa a mergulhar na experiência e quando vê está entregue. Foi uma das piores experiências da minha vida, com humilhação e privação de sono porque são mais de 12 horas de curso por dia. Se uma pessoa erra uma técnica de respiração, todos pagam ficando sem comer. E nós aceitamos porque eles nos manipulavam dizendo que tudo era para o nosso bem.
Os denunciantes — a maioria alega ter começado como seguidores de Ravi — tentam provar na Justiça a tese de “estelionato religioso” e exploração de mão de obra. Seis deles deram entrevistas exclusivas ao GLOBO, afirmando que a manipulação mental era a base de uma rotina exaustiva e de restrições alimentares. Procurada, a Arte de Viver não se pronunciou sobre as acusações.
“Cadeira elétrica”
As vítimas afirmam que se uniram e procuraram apoio jurídico após serem afastadas pela direção da Arte de Viver no ano passado, por não terem concordado com o que consideram omissão da instituição nos casos de abuso sexual, que envolvem vítimas do Brasil, da Argentina e do Uruguai. A polícia brasileira investiga em sigilo um caso que chegou à Promotoria da Justiça Criminal de Santo Amaro, em São Paulo.
Na nova leva de denúncias, oito pessoas ajuizaram ações cíveis e no Ministério Público do Trabalho no Rio e outras oito recolhem, no momento, documentação para formalizar queixa.
D.P. conta que, além dele, dezenas de pessoas que participavam do curso Divya Samaj Nirman (DSN) — em português, Criando uma Sociedade Divina —, em 2014, também passaram pela “cadeira elétrica”. A ideia era que uns humilhassem os outros para se “despirem do ego”, mas o resultado, conta o ex-voluntário, foram pessoas desmaiando ou urinando de desespero. O curso também punia quem errasse a respiração iogue, reduzindo o tempo de sono e a quantidade de comida.
De acordo com os denunciantes, todos os cursos da instituição são sigilosos para preservar “a sacralidade” das experiências. Na inscrição dos cursos, que podem custar até mais de R$ 7 mil, a Arte de Viver alerta que a pessoa deve se certificar de que “está forte e estável emocionalmente e fisicamente para poder participar 100% do programa”.
A estudante Yasmim Borges, de 28 anos, começou a frequentar a seita ainda menor de idade, aos 17. Na época, ela já sofria de ansiedade e afirma ter sido induzida, por devoção ao guru da Arte de Viver, a trabalhos voluntários extremamente cansativos, chamados de Seva. Ela diz ter sido levada a acreditar que, assim, se curaria. Com o tempo, passou a instrutora de cursos, sem receber pelo trabalho.
Em sua ação, ela alega que chegou a pagar passagens e lanches do próprio bolso para servir aos alunos. Yasmim lembra que, quando questionava sobre o dinheiro arrecadado pelo Seva, ouvia que tinha “mente pequena”. E assim foi trabalhando horas a fio, até que, em 2017, teve outra depressão, desta vez grave, que só foi contida com medicamentos:
— Cheguei a pesar 48 quilos, e eles me criticaram por tomar remédios. Diziam que eu tinha que ir para Índia fazer o Seva que ficaria curada. Hoje me sinto burra e abandonada por um mestre (Ravi Shankar) que foi a pessoa que mais amei na vida.
Outra denúncia comum relatada à Justiça é a de que a ADV exigia o cumprimento de metas de captação de fiéis e, quem não as atingisse, era cobrado mesmo que não fosse empregado da instituição. Alguns chegaram a ser contratados, mas outros concordavam em trabalhar como voluntários, movidos pelo apelo espiritual.
Em um documento fornecido ao GLOBO, a ADV orienta cada participante a captar um mínimo de 75 inscritos nos cursos, a dar mais de três cursos para um público superior a 100 pessoas e a atrair centenas de seguidores para as redes sociais.
O sistema foi confirmado pela bióloga Luciana Amorim, de 40 anos, que foi instrutora full time por seis anos. Segundo ela, a instituição atua em esquema de pirâmide e lucra em cima do “abuso da fé”, mesmo se declarando organização sem fins lucrativos e, a princípio, sem caráter religioso.
— Eu trabalhei como CLT, mas nem todos recebem porque há um esquema de pirâmide: as pessoas pagam caro no curso e depois trabalham de graça pelo “bem espiritual”. Nós arrecadávamos dinheiro para os projetos sociais, e 25% iam para a ADV. Não há nenhuma transparência com a verba e nenhuma atuação como organizações sem fins lucrativos, como eles se denominam — acusa ela.
Vestidos de sem-teto
Em outra dinâmica, a gerente de projetos Débora Parreiras, de 35 anos, descreve a forma agressiva com que foi deixada nas ruas de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, com roupas rasgadas e sujas para mendigar. Ela deveria se passar por moradora de rua, o que era parte das atividades do curso Teacher Training Program (TTP), ou Programa de Formação de Instrutores na tradução, que dura 15 dias. Apesar de ter se sentido desrespeitada com o episódio, ocorrido em 2019, Débora acredita não ter se afastado da ADV por ter sofrido “lavagem cerebral”.
— Avisaram que era para retornarmos ao mesmo lugar no pôr do sol. Éramos cerca de oitenta pessoas brancas com dinheiro e travestidas de moradores de rua. As pessoas da região ameaçaram nos espancar, e eu fui salva por fiéis de uma igreja evangélica. Algumas amigas chegaram a ter armas apontadas para a cabeça. No fim, a gente acreditava que tinha que sofrer para evoluir, como prega Ravi — recorda-se Débora, que se desligou de vez da seita no ano passado.
A pesquisadora Andrea Acioli, de 43 anos, passou pelo mesmo processo dois anos antes, mas em Petrópolis, região Serrana do Rio. Pedindo esmola, ela afirma ter arrecadado R$ 300, que ficaram para a ADV. Com Andrea, estavam mais de 90 pessoas.
— As pessoas que passavam na rua me mandavam procurar emprego, e eu não sabia o que responder, porque não vivia na rua. Tenho crise de ansiedade e depressão até hoje — afirma a pesquisadora, que foi a responsável por trazer ao Brasil os casos de abuso sexual envolvendo líderes religiosos da ADV na América Latina.
A advogada Viviane Lupin — que representa os denunciantes ao lado dos colegas Luiz Carlos de Oliveira e Fayda Belo — diz que a entidade obtém lucro explorando a crença de terceiros:
— Eles fazem cursos, trabalham exaustivamente para seguir um mestre que lucra com a devoção deles e os afasta da família e amigos para não serem “contaminados” pelo mundo.
Fonte: O GLOBO
— Eu trabalhei como CLT, mas nem todos recebem porque há um esquema de pirâmide: as pessoas pagam caro no curso e depois trabalham de graça pelo “bem espiritual”. Nós arrecadávamos dinheiro para os projetos sociais, e 25% iam para a ADV. Não há nenhuma transparência com a verba e nenhuma atuação como organizações sem fins lucrativos, como eles se denominam — acusa ela.
Vestidos de sem-teto
Em outra dinâmica, a gerente de projetos Débora Parreiras, de 35 anos, descreve a forma agressiva com que foi deixada nas ruas de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, com roupas rasgadas e sujas para mendigar. Ela deveria se passar por moradora de rua, o que era parte das atividades do curso Teacher Training Program (TTP), ou Programa de Formação de Instrutores na tradução, que dura 15 dias. Apesar de ter se sentido desrespeitada com o episódio, ocorrido em 2019, Débora acredita não ter se afastado da ADV por ter sofrido “lavagem cerebral”.
— Avisaram que era para retornarmos ao mesmo lugar no pôr do sol. Éramos cerca de oitenta pessoas brancas com dinheiro e travestidas de moradores de rua. As pessoas da região ameaçaram nos espancar, e eu fui salva por fiéis de uma igreja evangélica. Algumas amigas chegaram a ter armas apontadas para a cabeça. No fim, a gente acreditava que tinha que sofrer para evoluir, como prega Ravi — recorda-se Débora, que se desligou de vez da seita no ano passado.
A pesquisadora Andrea Acioli, de 43 anos, passou pelo mesmo processo dois anos antes, mas em Petrópolis, região Serrana do Rio. Pedindo esmola, ela afirma ter arrecadado R$ 300, que ficaram para a ADV. Com Andrea, estavam mais de 90 pessoas.
— As pessoas que passavam na rua me mandavam procurar emprego, e eu não sabia o que responder, porque não vivia na rua. Tenho crise de ansiedade e depressão até hoje — afirma a pesquisadora, que foi a responsável por trazer ao Brasil os casos de abuso sexual envolvendo líderes religiosos da ADV na América Latina.
A advogada Viviane Lupin — que representa os denunciantes ao lado dos colegas Luiz Carlos de Oliveira e Fayda Belo — diz que a entidade obtém lucro explorando a crença de terceiros:
— Eles fazem cursos, trabalham exaustivamente para seguir um mestre que lucra com a devoção deles e os afasta da família e amigos para não serem “contaminados” pelo mundo.
Fonte: O GLOBO
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