Governo intensifica ações para doutrinar mais jovens sobre sua visão de militarismo, mas estratégia encontra resistência em setores da sociedade

Uma nova versão do ABC no Extremo Oriente da Rússia traz “A” para Armadas, “I” para irmandade e traz uma frase direta depois de cada letra no livro, como "Ame seu Exército”.

Um evento de natação na cidade de Magnitogorsk (Sul) teve adolescentes mergulhando em uma piscina usando uniformes camuflados, enquanto outros competidores traziam rifles Kalashnikov em suas costas.

“Atiradores de elite” foi o tema adotado em aulas de matemática em uma escola do ensino fundamental na região Central da Rússia, com estrelas douradas numerando o que seriam buracos de bala em um alvo desenhado na lousa.

No momento em que a guerra na Ucrânia entra em seu 16º mês, programas educacionais ao redor da Rússia estão lotados de lições e atividades extracurriculares girando em torno do militarismo e do patriotismo.

Essas ações fazem parte de uma campanha ampla do Kremlin para militarizar a sociedade russa, para fazer com que as gerações futuras venerem o Exército e para enraizar a narrativa do presidente Vladimir Putin de que “uma guerra real foi lançada mais uma vez contra nossa mãe pátria”, como disse em um discurso no mês passado.

A doutrinação começou essencialmente depois da anexação da Crimeia, em 2014, mas a invasão militar da Ucrânia acelerou o processo. O Ministério da Educação e Ciência libera uma quantidade constante de material, incluindo planos de aulas e exemplos práticos, como um vídeo de um sarau estudantil que usou dança, poesia e teatro para explicar a história da inteligência exterior da Rússia.

— Ela [doutrinação] inclui todos os níveis, do jardim da infância à universidade — disse Daniil Ken, chefe da Aliança de Professores, um sindicato independente russo que trabalha hoje em meio a um exílio voluntário. — Estão tentando envolver todas essas crianças, todas estudantes, nesse trabalho direto de apoio à guerra.

Por anos, líderes russos tentaram condicionar seus cidadãos a aceitarem a supremacia do Kremlin, em parte ao banirem conversas sobre política nas escolas. Agora o governo espera persuadir o público a apoiar ativamente os esforços de guerra, e no caso dos homens jovens, a lutar.

Mesmo assim, o Kremlin quer evitar jogar muita gasolina na chama do patriotismo, assim como não quer que os russos comecem a questionar as razões para a guerra. Da mesma forma que Putin evitou ordenar convocações múltiplas de soldados para evitar o sentimento contra a guerra, ele também deu aos pais alguma margem de manobra para evitar lições de propaganda.

Dessa forma, talvez estejam esperando evitar a desconexão que surgiu nos tempos da União Soviética, quando o sistema educacional retratava o país como a terra da fartura comunista, ao mesmo tempo em que os próprios russos podiam ver as prateleiras vazias.

— Eles querem entusiasmo, mas sabem que se pressionarem muito poderão galvanizar uma oposição organizada — disse Alexandra Arkhipova, uma antropóloga social que estuda as reações públicas à guerra. — Eles não querem que as pessoas protestem.

'Conversas importantes'

Entrevistas no mês passado com sociólogos, educadores, pais e estudantes, além de uma revisão de material publicado pelas escolas e meios de imprensa locais, mostram um esforço amplo do governo para impulsionar conteúdo militar-patriótico nas 40 mil escolas da Rússia.

Um pilar da iniciativa é um programa chamado “Conversas Importantes”, iniciado em setembro do ano passado. Todas as segundas-feiras, às 8 da manhã, escolas são obrigadas a realizar uma cerimônia de hasteamento da bandeira russa enquanto o hino nacional é executado. Depois todos participam de uma aula sobre tópicos importantes, como os momentos mais marcantes da História russa.

O ministro da Educação, Sergei Kravtsov, não respondeu uma série de perguntas por escrito. Quando o programa foi lançado no ano passado, ele conversou com a agência Tass.

— Queremos que a atual geração de alunos cresça com tradições completamente diferentes, com orgulho de sua pátria — disse. Um canal do Telegram e um site disseminam o material para as salas de aula.

“Conversas Importantes” foi enriquecido por programas com nomes como “Lições de Coragem” e “Heróis entre Nós”. Estudantes foram incentivados a escrever poesia exaltando a Mãe Pátria e os feitos de soldados russos. Vários vídeos mostram crianças em idade escolar lendo textos como “todos os canalhas estão deixando a Rússia, eles têm um lugar para viver no Ocidente; [são] gangsters, sodomitas”.

Meias e gritos para o ar

As aulas também enfatizam conflitos passados, especialmente relacionados a sucesso da União Soviética contra a Alemanha nazista. Sugestões de atividades ligadas a essas aulas podem até parecer um pouco antiquadas, como costurar meias para os soldados.

Veteranos frequentemente são levados às salas para detalhar suas experiências. Em abril, na cidade de Dimitrov, perto de Moscou, três soldados falaram para um grupo de estudantes com idades entre 10 e 15 anos, alguns portando bandeiras russas. Um vídeo da sessão mostra um dos militares falando sobre o desejo de defender a pátria contra o “lixo fascista”.

Mas de modo geral, não há uma máquina única de propaganda porque a decisão sobre como implementar as “Conversas Importantes” foi em grande parte deixada a cargo dos administradores das escolas.

Alguns professores usam uma abordagem mais dura. Um vídeo publicado pelo canal Doxa, no Telegram, mostra um professor exigindo que seus estudantes levantem os punhos para o alto enquanto cantam uma música popular, “Eu sou russo”. O professor grita depois que “o impulso [do braço] deve ser para o céu, para a Otan”.

Já outros sequer mencionam a guerra, especialmente em locais como Moscou, onde muitos pais desaprovam as tentativas de doutrinar os filhos deles.

Yuri Lapshin, ex-psicólogo de uma escola de elite em Moscou, disse em entrevista que enquanto pesquisava um artigo, achou exemplos de interpretações únicas do programa. Um professor de matemática, por exemplo, disse aos alunos que a conversa mais importante do mundo era sobre álgebra, então ele dedicaria a aula a isso. No dia supostamente reservado ao conceito de “Mãe Pátria”, um professor de biologia deu uma palestra sobre a desova dos salmões nos rios.

Mesmo quando as aulas sobre a guerra acontecem, por vezes o resultado não é o esperado. Em uma reunião com dois militares, estudantes de uma escola técnica de São Petersburgo basicamente tiraram sarro dos veteranos. Eles questionaram por que estavam lutando em outro país se a tarefa era a defesa da Rússia, e como Deus via os assassinatos de pessoas no conflito. Pelo menos cinco estudantes receberam reprimendas da direção da escola, segundo informações da imprensa local.

Sasha Boychenko, de 17 anos, estudante do ensino médio, foi a quatro “Conversas Importantes” em Vladivostok, na costa do Pacífico, no ano passado, antes de sua família deixar a Rússia. Estudantes entediados riam das demonstrações de História, ela lembra.

— Depois da aula, nos questionamos por que estávamos ali — disse, em entrevista.

Alexander Kondrashev, professor de História na Rússia há 10 anos, disse que estava aguardando uma versão revisada dos livros didáticos. Uma cópia obtida pelo site Mediazona encontrou uma mudança fundamental nos textos: todas as referências a Kiev, capital da Ucrânia, como base para o nascimento da Rússia como uma nação cristã, foram apagadas.

— Ninguém vê as “Conversas Importantes” como um ensinamento útil que vai ajudar na vida futura, como as aulas de física, matemática, geografia, ou o conhecimento obtido nas aulas de História — opinou Kondrashev em entrevista.

As pessoas têm encontrado maneiras para escapar das aulas. A Aliança de Professores disse aos pais que eles podem formalmente pedir para que seus filhos não participem das aulas. Outros deixam seus filhos mais tarde na escola, ou então ligam para dizer que estão doentes em várias segundas-feiras. 

Mas isso é algo que deixa os pais nervosos, dizem especialistas, especialmente depois que alguns administradores escolares denunciaram pais e estudantes que não se entusiasmaram com o projeto.

Uma mulher chamada Zarema, de 47 anos, disse que se preocupava com os três filhos que estão na escola no Daguestão, no Cáucaso. Enquanto ela manda seu filho mais novo, hoje no sexto ano, para as “Conversas Importantes”, ela disse ter dado um conselho para que evitasse se engajar politicamente.

— Estamos assustados com tudo aqui agora — afirmou, pedindo que seu nome completo não fosse usado por causa das críticas à guerra.

A Rússia apresentou a guerra como uma oportunidade econômica em áreas mais pobres, ao mesmo tempo em que evitava a agressividade em cidades maiores.

— Eles estão tentando mirar nas pessoas que têm menos recursos — disse Greg Yudin, sociólogo hoje em período de pesquisas na Universidade Princeton. — Eles dão uma opção que promete dinheiro, status, benefícios e, ainda mais, você será um herói.

Para ampliar o apelo, os ministérios da Educação e Defesa anunciaram que o treinamento militar será obrigatório para estudantes do 10º ano a partir do ano que vem. Meninas vão aprender primeiros socorros em ambientes de combate, enquanto meninos receberão instruções sobre formação de tropas e sobre como usar um rifle Kalashnikov.


Fonte: O GLOBO