Em meio ao crescimento do acesso à internet no Brasil, discussões políticas ganharam ainda mais visibilidade

Em junho de 2013, o Facebook tinha a preferência dos usuários brasileiros de internet e deixava para trás o Orkut. Naquele mês, sua ferramenta de eventos — que permitia acompanhar shows e outras programações locais — ganhou uma função diferente: a cada semana, passou a anunciar manifestações cada vez maiores nas ruas das grandes cidades brasileiras. 

Na rede, fotos, vídeos e transmissões em tempo real também ampliavam os olhares e a velocidade das informações sobre as passeatas, suas pautas amplas e diversidade de manifestantes. Daquela inquietação, estreava uma nova forma de mobilização ancorada nas plataformas digitais.

Se as redes sociais foram centrais na organização e mobilização vista nos protestos de junho, passados dez anos dos atos, o inverso fica mais evidente. A revolta por mais que 20 centavos alterou profundamente a própria dinâmica das redes sociais e a forma como os brasileiros passaram a debater política ao longo da última década, apontam pesquisadores ouvidos pelo GLOBO.

Após os protestos, as discussões sobre o assunto não só ganharam ainda mais visibilidade como a polarização se acentuou nesse ambiente. A ascensão e predominância das novas direitas também se tornaram uma marca. O segmento radicalizou o discurso, foi mais eficiente que os outros campos em se apropriar das inovações tecnológicas em curso e formou novas lideranças em torno da figura de Jair Bolsonaro (PL).

A politização não significou, porém, a qualificação do debate. As táticas de desinformação e de promoção de discurso de ódio se sofisticaram, ganharam escala e atingiram em cheio as discussões e a democracia. Em paralelo, a internet chegou a outro patamar com os smartphones e a popularização do WhatsApp: o número de domicílios brasileiros conectados ultrapassou a marca dos 80% em 2020, ano em que se inicia a pandemia de Covid-19, segundo dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Mais divididos

O processo de polarização no Facebook pós-2013 foi mapeado pelos pesquisadores Pablo Ortellado, professor de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP), e Márcio Moretto Ribeiro, professor de sistemas de informação, também da USP, que analisaram as interações de 12 milhões de usuários brasileiros com páginas políticas. 

Em 2013, a distância entre movimentos de esquerda e de direita mapeados era menor e havia sobreposição entre algumas das comunidades temáticas de usuários que formavam esses polos. Interessados em movimentos sociais progressistas, por exemplo, também se interessavam pelo movimento anticorrupção. Já defensores da pauta anticorrupção também estavam interessados pela agenda ambiental.

Essa dinâmica mudou entre 2014 e 2016. A polarização política se fortaleceu. As comunidades acompanhadas pelos pesquisadores se separaram e se distanciaram. Grupos de direita se uniram em torno da questão da anticorrupção e os de esquerda se agruparam em torno da agenda de programas sociais e serviços públicos. Para Ortellado, não apenas os assuntos políticos passaram a predominar como as relações sociais se tornaram mais homogêneas.

— Quando a gente fala de polarização política, a gente normalmente enfatiza a divisão, mas polarização também é fusão. É uma simplificação do panorama político. Antes, o mundo anticorrupção conversava com o feminismo e o antirracismo. Isso é uma impossibilidade hoje, são mundos à parte — explica o pesquisador.

Evolução da polarização política no Facebook

Mapeamento de pesquisadores da USP analisou interações de 12 milhões de usuários brasileiros do Facebook com páginas políticas entre 2013 e 2016

2013:
A distância entre os movimentos de esquerda e de direita é menor e há sobreposição entre diferentes comunidades temáticas de usuários

2014:
Após os protestos de junho de 2013, os grupos começam a se dividir mais entre a esquerda e a direita

2016: Os usuários se tornaram fortemente polarizados. Se antes compreendiam seis comunidades de interesse visivelmente distintas, passaram se separar em apenas dois grupos

O quanto desse fenômeno é social, um comportamento que também seguimos no mundo offline, e o quanto é alimentado pelos algoritmos das plataformas? Não há resposta conclusiva, aponta Ortellado:

— Nos tornamos mais polarizados, isso passa pelas mídias sociais, mas o mecanismo pelo qual esse processo acontece não é conclusivo. Quem tentou estudar a ação dos algoritmos não encontrou um papel maior que nosso comportamento offline. Uma pessoa de esquerda tem amigos de esquerda, frequenta lugares de esquerda, e vice-versa.

Língua da rede

Diretor da Escola de Comunicação da Fundação Getulio Vargas (ECMI/FGV), Marco Aurelio Ruediger aponta para a dificuldade do centro político em se incorporar às redes. Um levantamento da ECMI/FGV, a pedido do GLOBO, exemplifica a consolidação da extrema-direita nos últimos dez anos.

Uma série histórica com 16 páginas no Facebook de políticos e movimentos de diferentes espectros políticos indica que o ex-presidente Bolsonaro concentrou boa parte dos picos de curtidas, comentários e compartilhamentos no período, enquanto nomes ao centro registraram repercussão inferior mesmo em eleições.

— Após junho de 2013, vemos um esfacelamento e fracasso do centro político, que não conseguiu readequar propostas nessa dinâmica e criar narrativas que operassem nas redes. A direita hegemoniza as redes como estrutura política e entende sua linguagem. Só agora, na última eleição, a esquerda conseguiu contrabalançar — avalia Ruediger.

Uma consequência da ascensão dessa nova direita é que o debate se tornou passível de “deformação”, o que impactou a confiabilidade das informações em circulação, defende o pesquisador:

— A emoção acaba sendo exacerbada e contaminada pela distorção de fatos. A direita volta à cena com menos pudor, inclusive na sua radicalidade.

Professor de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Marcelo Alves afirma que houve rearranjo no comportamento político após 2013, em que a novidade foi a articulação da direita.

— Agendas que falavam de forma mais difusa e expressavam uma revolta contra o sistema político começaram a ganhar protagonismo. Embora não haja um nexo casual com 2013, há um repertório que a direita começa a aprender, tanto do ponto de vista de rua quanto das mídias digitais — diz Alves. — Essa rede não é constituída a partir de poucos atores, mas é difusa e navega em culturas digitais, na produção de meme.

Já o comunicador e influenciador digital Felipe Neto, que deu uma guinada em seu posicionamento político nos últimos anos, avalia que a esquerda, mesmo dez anos depois dos atos, ainda tem dificuldade de navegar nas redes. Por outro lado, ele chama atenção para o impacto do modelo de negócio das plataformas:

— Conteúdos extremistas rendem muito mais acessos e dinheiro para as redes e, por isso, os algoritmos continuam priorizando esse tipo de coisa. A situação não está melhorando, muito pelo contrário. Enquanto o sistema de recomendações não for resolvido, não teremos qualquer avanço.


Fonte: O GLOBO