Encontros de enviado especial americano com autoridades chinesas não produziram nenhum anúncio substancial, enquanto ex-secretário de Estado foi recebido por Xi Jinping

A passagem de John Kerry por Pequim era para ser um ponto alto na tentativa de distensão entre Estados Unidos e China, com destaque para a presença de mais uma figura importante do governo americano no país. 

Mas a viagem do representante da Casa Branca para o clima foi ofuscada por uma personalidade centenária, recebida com honras de chefe de Estado. Em uma visita surpresa, Henry Kissinger confirmou o status de herói que lhe é concedido pelo governo chinês, um status que tem ecos no passado e no presente.

Na cobertura das mídias oficiais chinesas, Kissinger recebeu mais espaço que John Kerry, que passou quatro dias em Pequim buscando entendimento num dos poucos temas em que há chance de consenso entre as maiores economias do mundo (e maiores poluidoras) , o combate às mudanças climáticas. Apesar disso, os encontros de Kerry com autoridades chinesas não produziram nenhum anúncio substancial, além de declarações de que as conversas foram “francas e produtivas”.

Como ocorrera em recentes passagens de altas autoridades americanas por Pequim, dos secretários de Estado e Tesouro, muitos viram na visita de Kerry em si um sinal de progresso para retomar o diálogo e esfriar a tensão bilateral. É pouco, mas traduz a dissonância atual. 

As conversas sobre o clima entre os dois países estavam paradas desde agosto do ano passado, quando o governo chinês cortou o diálogo com Washington nessa e em outras áreas em resposta à viagem a Taiwan da presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi.

Enquanto Kerry concluía sua visita, uma mensagem do presidente chinês deixou claro como Pequim não cederá facilmente aos apelos dos EUA para acelerar sua contribuição contra as mudanças climáticas, principalmente com a redução do uso de carvão. 

Em discurso nesta quarta, Xi Jinping disse que o compromisso da China com a causa climática é “inabalável”, mas que o país não cederá à pressão externa. “O caminho, os meios, o tempo e a intensidade para atingir os objetivos serão determinados por nós, não à mercê de outros”, disse o líder chinês, segundo o jornal "Diário do Povo".

Xi não esteve com Kerry, mas achou espaço em sua agenda para receber Kissinger nesta quinta. O encontro foi na residência oficial para visitantes ilustres de Diaoyutai, o mesmo local onde Kissinger ficou hospedado em sua visita secreta de 1971, que abriu caminho para o estabelecimento de relações entre EUA e China. De acordo com o comunicado divulgado pelo governo chinês, Xi enalteceu o papel de Kissinger na normalização entre os dois países e disse que “o povo chinês nunca esquece um velho amigo”.

Não é novidade a acolhida calorosa em Pequim ao ex-secretário de Estado, que completou cem anos em maio e, segundo Xi, já fez mais de cem viagens à China. Em 2013, quando Kissinger era então um jovem de 90 anos e ainda caminhava sem a ajuda da bengala que usa hoje, este repórter testemunhou a euforia provocada por ele ao participar de um evento na mesma residência oficial de Diaoyutai. Recebido com honras e cercado por jovens em busca de uma selfie com o “velho amigo da China”, Kissinger parecia deleitar-se com uma unanimidade que não usufrui em qualquer outro país, inclusive o seu.

A responsabilidade em atrocidades como as causadas pelo prolongamento da Guerra do Vietnã, o apoio a ditaduras na América do Sul e a regimes genocidas como na Indonésia e no Paquistão são ignorados no discurso oficial do governo chinês, que prefere se concentrar em outra parte do currículo de Kissinger, aquela que começa e termina em Pequim.

Desta vez, porém, não é apenas pelo seu papel histórico nas relações bilaterais que o centenário estrategista é exaltado na China, mas também pelas sua posição crítica sobre o comportamento dos EUA com o país asiático. 

Em entrevistas recentes, Kissinger disse que o governo Biden tem permitido que a política doméstica dite o acirramento das relações com a China e alertou que a escalada de hostilidades poderá levar "a uma catástrofe comparável à Primeira Guerra Mundial." Para o governo chinês, que culpa Washington pelas tensões por cultivar uma “mentalidade de Guerra Fria”, as palavras do veterano diplomata soaram como música.

Além do encontro com Xi e das palavras elogiosas que ouviu, Kissinger também ganhou outros privilégios que têm sido negados pelos chineses às autoridades americanas. Na terça, ele se reuniu-se com o ministro da Defesa, Li Shangfu. Alvo de sanções de Washington por sua cooperação militar com a Rússia, Li recusou um pedido de encontro no mês passado com o secretário de Defesa americano, Lloyd Austin. O que falta hoje em dia em Washington é “uma sabedoria no estilo de Kissinger", disse o czar da diplomacia chinesa, Wang Yi, em encontro com o ex-secretário de Estado.

A julgar pelas homenagens que recebeu nos EUA quando completou cem anos, a sabedoria de Kissinger também é reconhecida por muitos em seu país. Um ícone, porém, cuja longevidade não se traduz em influência à prova do tempo. Já vai longe o tempo em que suas opiniões eram levadas em conta na condução das políticas americanas para a China como na época de sua visita secreta a Pequim, cinco décadas atrás.


Fonte: O GLOBO