Nicarágua foi maior obstáculo para negociações de acordo final da cúpula UE-Celac; país se opôs a uma condenação direta à Rússia pela invasão da Ucrânia no texto final do encontro
O presidente nicaraguense, Daniel Ortega, criticou na quarta-feira à noite a União Europeia (UE) por ter insistido para que o "fascista" e nazista presidente da Ucrânia”, Volodymyr Zelensky, participasse na cúpula do bloco com a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que havia terminado na véspera em Bruxelas. A Nicarágua foi a principal opositora de se englobar na declaração final do encontro uma condenação direta à Rússia. Também foi a única das 60 nações participantes a fazer uma ressalva ao parágrafo que demonstra "profunda preocupação" com a guerra no Leste da Europa.
Em um evento para marcar os 44 anos da revolução sandinista, Ortega repetiu uma das retóricas russas para justificar a invasão, chamando o regime de Zelensky — que é judeu — de "fascista" e "nazista". Há 16 anos interruptos no poder, o presidente nicaraguense é internacionalmente criticado pelos retrocessos democráticos em seu país, sendo inclusive alvo de sanções americanas e europeias.
— Nesta reunião da União Europeia com a Celac, queriam incluir o fascista, o presidente nazista da Ucrânia, que ele estivesse lá — afirmou ele.
A guerra da Ucrânia foi um dos assuntos-chave da cúpula, e a insistência europeia de fazer uma condenação explícita à Rússia fez com que as negociações ficassem travadas até o fim, esbarrando na resistência de países latino-americanos que adotam maior neutralidade com Moscou e mantêm fortes laços comerciais com o país de Vladimir Putin. No fim, há menção à guerra em um parágrafo:
"Expressamos profunda preocupação com a guerra atual contra a Ucrânia, que continua a causar imenso sofrimento humano e exacerba fragilidades existentes na economia global, impedindo o crescimento, aumentando a inflação, interrompendo cadeias de suprimento, aumento a insegurança energética e alimentar e elevando o risco de estabilidade financeira", diz o texto, em que as nações dizem apoiar a "necessidade de uma paz justa e sustentável".
No pé da décima página, contudo, vem a ressalva nicaraguense: "esta declaração foi apoiada por todos os países, exceto um, devido suas desavenças com um parágrafo". A resistência quase vetou o texto final, já que é preciso haver unanimidade para sua assinatura, impasse que só foi destravado após um grupo de chefe de Estados se reunir em uma sala para tentar chegar a uma solução.
Mandatários como presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o argentino Alberto Fernández e o colombiano Gustavo Petro chegaram a falar diretamente com Manágua para tentar convencer um irredutível Ortega, que havia enviado um representante para a Europa. Sem sucesso, precisaram recorrer ao artifício de citar a desavença no pé do documento.
Lula contra Boric
Os impasses sobre a guerra na Ucrânia geraram tensões até mesmo entre os próprios líderes latino-americanos, com uma troca pública de farpas enter Lula e seu colega chileno, Gabriel Boric, na quarta. Na véspera, Boric havia criticado o impasse ao redor do texto final, afirmando que "hoje em dia porque alguns não querem dizer que a guerra é contra a Ucrânia".
— Hoje é a Ucrânia e amanhã pode ser qualquer um de nós — disse ele.
Indagado sobre as declarações, Lula respondeu que a juventude do colega o faz ser "sequioso", "mais apressado". Diplomaticamente, Boric respondeu que tem "respeito infinito e carinho por Lula, mas temos que ser muito claros ao dizer que esta é uma guerra de agressão inaceitável". O Brasil condenou a invasão russa na Assembleia Geral da ONU, mas adota uma posição de neutralidade e declarações prévias de Lula equiparando as responsabilidades dos países invasor e invadido geraram críticas internacionais.
As desavenças entre Lula e Boric refletem um racha entre duas das esquerdas latino-americanas: com 37 anos, o presidente chileno faz parte de um movimento progressista que se moldou já em um continente em redemocratização e mais afinado com as demandas do século XXI. Lula, por sua vez, é uma figura política desde o mundo ainda tinha uma ordem bipolar.
Os dois também divergem sobre Ortega: Boric é mais veemente contra Ortega, chamando-o inclusive de ditador. Lula, por sua vez, tem sido criticado por opositores e ativistas pelo que consideram ser certa leniência. No início do ano, por exemplo, o país não apoiou uma declaração proposta pelo Canadá e assinada por 54 países sobre as ações antidemocráticas de Ortega na OEA, da qual a Nicarágua não faz mais parte.
Em fevereiro, por exemplo, Manágua libertou mais de 200 opositores detidos, deportando-os para os EUA. Uma série de países latino-americanos e europeus prontificaram-se para recebê-los, mas o Brasil permaneceu de imediato em silêncio, prontificando-se apenas depois de sofrer críticas maciças. O embaixador da União Europeia no país, Ignacio Ybáñez, por exemplo, compartilhou em suas redes sociais no início do ano um artigo crítico à postura de Lula em relação a regimes autoritários de esquerda na região.
Desde então, contudo, a retórica de Lula também parece ter mudado. Em visita ao Vaticano no mês passado, fez críticas à perseguição de religiosos pelo regime Ortega e disse que conversaria com o colega sobre o assunto. O presidente brasileiro afirmou também que "nem todo mundo é grande para pedir desculpas" e, segundo informações apuradas pelo GLOBO, Ortega estaria evitando-o para não discutir sobre os religiosos detidos.
Outras desavenças
Na cúpula da UE-Celac, Lula teria ficado insatisfeito com o fato de a posição nicaraguense dificultar o acordo final. Além de Ucrânia, outro ponto de discórdia foram as sanções à Cuba, também mencionadas por Ortega em seu longo discurso de quarta. Segundo ele, os europeus se recusaram a incluir o fim das sanções contra Venezuela e Nicarágua no documento, limitando-se apenas a Cuba.
— Propusemos que também fosse redigido o acordo para pedir o fim da política de agressões, sanções contra Cuba, em primeiro lugar, Venezuela e Nicarágua. Não aceitaram incluir Venezuela e Nicarágua — afirmou ele durante sua fala de mais de 1h30.
Milhares de pessoas compareceram ao ato do governo na Praça da Dignidade Nacional de Manágua, onde exibiram bandeiras da Frente Sandinista de Libertação Nacional. No evento, Ortega teceu diversas críticas aos EUA e elogiou Muamar Kadafi, ditador da Líbia por 42 anos, assassinado em 2011 em um desfecho da Primavera Árabe.
— Não podemos esquecer Kadafi (...). Ele se solidarizou com a Nicarágua e nos deu solidariedade incondicional — afirmou, antes de acrescentar que os Estados Unidos e seus aliados europeus "destruíram a Líbia".
Ortega liderou o governo sandinista na década de 1980 e retornou ao poder em 2007. A Nicarágua é alvo de sanções dos Estados Unidos e da UE devido ao tratamento reservado aos opositores desde os protestos de 2018. O presidente alega que os protestos foram uma tentativa de golpe de Estado patrocinada por Washington.
Alguns líderes sandinistas que participaram da revolução de 1979 compareceram aos protestos de 2018 e foram alvos de sanções do governo, incluindo a expatriação, retirada da nacionalidade e confisco de bens.
Fonte: O GLOBO
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