Com o Vox, extremistas têm chances de participar do governo pela primeira vez em mais de quatro décadas

Quem passou pela Rua de Santa Engracia, em Madri, na última semana, deparou-se com um cartaz gigantesco, no qual se lia em letras garrafais: “Sánchez botou centenas destes monstros na rua”. A foto da propaganda — um spot de campanha do partido de extrema direita Vox contra o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, do Partido Socialista Operário Espanhol (Psoe) — sugere um ataque sexual a uma mulher. 

Na última quarta-feira, um grupo de ativistas conseguiu alterar a mensagem, trocando o nome do premier pelo do líder da legenda de ultradireita, Santiago Abascal, e transformando a frase em: “Abascal botou centenas destes monstros em suas fileiras”.

O tema da violência contra a mulher — e a “violência machista” ou “violência de gênero”, outros conceitos do debate na Espanha— se tornou central na campanha para as eleições gerais de amanhã, quando a direita pode vencer e levar à reboque a extrema direita ao governo nacional pela primeira vez desde o fim da ditadura de Francisco Franco, em 1975.

O governo Sánchez não saiu ileso dos ataques maciços à lei sobre crimes sexuais aprovada ano passado — conhecida como lei do “só o sim é sim” — e que terminou provocando um efeito indesejado ao reduzir penas de estupradores. A legislação prevê que o consentimento é o eixo legal para definir o que é estupro e incorpora a ideia de que apenas quando ele é expresso (um sim manifesto, não apenas o silêncio ou a falta de resistência) o ato sexual passa a ser consentido. Mas a lei gerou uma revisão de penas que colocou o governo na berlinda.

— Nesta campanha, o tema está em primeiro lugar na agenda política porque a direita está utilizando muito, para neutralizar a vantagem que a esquerda tem em temas ligados à violência de gênero e também para atacar o governo pela má gestão neste assunto — explica ao GLOBO o professor de Ciência Política Ignacio Jurado, da Universidade Carlos III de Madri.

‘Erro mais importante’

O primeiro-ministro reconheceu, no mês passado, que os efeitos colaterais da legislação foram o pior revés de seu mandato.

— Foi erro para mim mais importante que cometemos durante estes quatro anos de um governo feminista, que aprovou 200 leis. E foi cometido um erro, nesse caso, técnico — disse Sánchez durante uma entrevista.

O tema também se tornou a maior saia-justa para a direita tradicional do Partido Popular (PP) em seu esforço de “normalizar” uma possível aliança nacional com os ultraconservadores, que ameaçam carregar para dentro do governo espanhol pautas como a reversão de leis sobre violência de gênero e direito ao aborto, além da extinção do Ministério da Igualdade.

— O PP supostamente não partilha destas políticas, mas parece estar escolhendo sacrificar estes avanços em direitos para chegar ao poder — disse Paloma Román Marugan, professora da Universidade Complutense de Madri à rede de TV CNN. — É preocupante para o país que estejam dando espaço para questões que não estavam nem em debate na sociedade espanhola, tínhamos virado essa página.

Na última grande pesquisa sobre violência contra a mulher divulgada pelo governo espanhol em 2019, 57,3% das mulheres acima de 16 anos declararam ter sofrido violência definida como “violência machista”, ao longo da vida.

Foi a vitória arrasadora do PP nas urnas, nas eleições regionais de 28 de maio, que fez o premier socialista antecipar as eleições gerais. No pleito estavam em jogo os governos de 12 das 17 regiões autônomas espanholas, além de todos os municípios. 

O PP foi disparado o mais votado em nível nacional e roubou da esquerda governos de várias regiões e cidades importantes — incluindo o da Comunidade Valenciana, a quarta região mais populosa, onde precisou do Vox para atingir a maioria absoluta no Parlamento, como manda o regime parlamentarista no país.

‘Violência intrafamiliar’

O formato da aliança repetiu o modelo de Castela e Leão, onde ultradireita chegou ao governo de uma região espanhola, pela primeira vez, no ano passado. O Vox indicou o vice-governador e três secretários. De saída, o PP barrou no governo regional um dos principais nomes locais da extrema direita, condenado por violência contra a ex-mulher. Um dia depois do anúncio do pacto, o presidente regional do Vox mostrou a que veio.

— A violência de gênero não existe, a violência machista não existe — declarou José María Llanos na televisão espanhola.

No documento que firmou a aliança PP-Vox na Comunidade Valenciana, não se fala em violência exclusivamente contra mulheres e sim em “violência intrafamiliar”, em especial a que sofrem “mulheres e crianças”, e em garantir “a igualdade entre todas as vítimas”. A linguagem reproduz o discurso tradicional do partido e de Abascal, para quem o conceito de “violência de gênero” é “ideológico”.

A porta-voz do Vox na cidade de Elche —onde a coalizão de direita também se formou e assumiu o governo — Aurora Rodil, explicou ao jornal americano New York Times que o partido não tem nenhuma disputa com as mulheres, apenas com a percepção de que a violência doméstica deve ser entendida por meio de ideologia baseada em gênero e de que o homem “apenas por ser homem é mau, tem um gene que o faz violento”.

As posturas radicais de lideranças do Vox obrigaram o líder do PP e candidato a se tornar o novo premier, Alberto Núñes Feijóo, a rejeitar publicamente a linguagem dos potenciais aliados nacionais, afirmando que “não dará um passo atrás na luta pela igualdade e contra a violência machista”.

As últimas pesquisas mostram um cenário de desfecho imprevisível amanhã, mas com vantagem clara para a direita. Em média, as pesquisas mostram o PP como mais votado, mas precisando do Vox para chegar à maioria absoluta necessária para formar um governo, que é de 176 cadeiras no Parlamento. É praticamente certo que nenhum partido chegará sozinho a essa marca. 

O PP provavelmente precisará do Vox para uma coalizão viável. Em um cenário menos provável de vitória da esquerda, o Psoe poderia não atingir a maioria apenas em coalizão com o Sumar — uma plataforma de 15 partidos que disputa com o Vox tornar-se a terceira força no Parlamento — e teria, então, que forjar uma aliança mais ampla, com legendas menores.

Sem capitalizar economia

No poder desde 2018, Sánchez, de 51 anos, não conseguiu capitalizar as boas notícias econômicas da Espanha, cujo PIB cresceu inesperados 5,5% no ano passado, com a inflação abaixo de 2% anuais em junho, a primeira das grandes economias da zona do euro a consegui-lo. Com isso, o premier usa outras armas contra os adversários.

— A esquerda está utilizando muito a ameaça do Vox, da ultradireita, de uma onda reacionária, dizendo que podem ocorrer retrocessos— afirma Jurado, que destaca o efeito das polêmicas em torno de alianças da esquerda com partidos oriundos de movimentos separatistas regionais. — O governo não pode usar essa estratégia com tanto êxito porque aqueles que têm medo da chegada da ultradireira também, em geral, estão descontentes com aos aliados que o governo tem.

Por outro lado, a direita, para María Martín, da consultoria de pesquisas GAD3, teve êxito ao adotar a estratégia de vilanizar o governo pelas alianças com independentistas e pelos efeitos da lei do “só o sim é sim”. Tudo isso contribui para o cenário de incerteza nas urnas.

— Há uma transferência de votos da esquerda para a direita que ronda, ao menos, 10% dos votos, antigos socialistas que reconhecem que votaram em Sánchez em novembro de 2019 e que agora dizem que vão votar no PP — disse Martín à agência France Presse.


Fonte: O GLOBO