Líder do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), Álvaro Lario fala ao GLOBO sobre formas de atacar o problema e parceria com o BNDES

Dias após o relatório "O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo" apontar que 21,1 milhões de brasileiros estão passando fome no país, Álvaro Lario, presidente da Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), agência da ONU com participação na elaboração do documento, esteve no Brasil para uma série de encontros com autoridades para discutir iniciativas voltadas para o desenvolvimento rural sustentável e a inclusão de comunidades vulneráveis na cadeia produtiva. Para ele, o foco das políticas para erradicar a fome no país deve ser atacar a pobreza rural, onde ainda há mais vulneráveis.

O FIDA prevê oito novos investimentos voltados para o combate das desigualdades rurais e ao fortalecimento da agricultura familiar. Os investimentos devem ultrapassar R$ 4,4 bilhões e impactar cerca de 2,1 milhões de pessoas.

Há, ainda, uma parceria com o BNDES para iniciativas focadas em segurança alimentar e na mitigação de efeitos das mudanças climáticas. O projeto quer impactar 250 mil famílias de baixa renda, moradoras de áreas rurais do Nordeste, com um investimento de R$ 1 bilhão.

Lario esteve com ministros de estado, como Wellington Dias (Desenvolvimento Social) e Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário), além da primeira-dama, Janja da Silva, com quem se encontrou nesta quinta-feira no Palácio do Planalto.

— Uma diferenciação importante (para o terceiro governo de Lula) é garantir que as comunidades vulneráveis, os pobres rurais, estejam no centro das políticas. A inclusão social dessas comunidades, de mulheres, jovens, indígenas quilombolas, em grande medida, é uma diferenciação importante se comparado com as outras políticas que tem a ver com produção, mas nem sempre com a comunidade.

Leia os principais trechos da entrevista:

O Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014, mas retornou em 2022, segundo anúncio da ONU. Quais fatores internos e externos contribuíram para o retorno do Brasil a esse cenário?

Eu apresentei o relatório do estado da segurança (alimentar) em Nova York aos outros órgãos da ONU, e o que ficou claro é que globalmente, desde a Covid-19 e a guerra na Ucrânia, há 122 milhões de pessoas a mais que sofrem de fome e insegurança alimentar no mundo. São 735 milhões, o que claramente é um desafio massivo. Na América Latina e no Brasil, o que vemos é que há grande a desigualdade.

Vocês têm noção das forças das empresas de agronegócio no Brasil, no Sul, no Sudeste e no Nordeste, nas regiões que eu visitei agora? Obviamente falta cooperativas, há pouco acesso a financiamento, acesso a água, acesso a terra, e isso cria muitas vezes comunidades vulneráveis, que não conseguem produzir e não tem a capacidade de ter uma receita, salários decentes.

No Brasil, vimos uma série de políticas de combate à fome que foram descontinuadas, como o Programa de Aquisição de Alimento e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Durante a pandemia, também tivemos o auxílio emergencial, mas que foi descontinuado em alguns momentos. Isso ajudou?

É difícil comentar as medidas políticas locais em qualquer país: temos 78 países membros. Mas a estatística nos mostra que o Brasil tinha erradicado a fome há vários anos e agora temos a pobreza extrema novamente, e essa é a realidade.

Mas por que esse cenário piorou no Brasil?

A realidade do Brasil é que provavelmente houve uma série de fatores nacionais e internacionais que contribuíram. A pandemia foi global, e teve claro impacto nos negócios, não só no Brasil, mas globalmente. 

Vimos o aumento da inflação, que afetou muitas comunidades vulneráveis. Não tenho certeza no Brasil, mas na África vimos muitos dos pequenos agricultores precisando optar entre se alimentar ou plantar. O Brasil, como grande produtor e exportador de alimentos, também foi atingido pela pandemia, pelas condições internacionais e a inflação alta, além de outros fatores.

Segundo o relatório da FAO, a fome aumentou consideravelmente no país e no mundo em relação ao último triênio pesquisado. Para além da pandemia, qual foi o impacto da Guerra na Ucrânia?

A guerra na Ucrânia teve um impacto em certas culturas. Um impacto alto e imediato no preço de certas comodities, como grãos, o trigo. Mas também vimos um segundo impacto nos termos do preço da energia e o preço de certos ingredientes relacionados aos adubos químicos e os preços dos adubos. Os pequenos agricultores no mundo inteiro sofreram particularmente com isso.

Esse mesmo documento considerou o aumento da urbanização como um fator importante a ser considerado para o aumento da fome. De que maneira ela contribui e como ela tem que ser considerado na construção de políticas para o combate à fome?

A urbanização traz desafios e oportunidades. Um dos desafios é que com o aumento da renda e estilos de vida diferentes nas cidades, isso cria uma nutrição pior, um consumo de produtos processados, com alto teor de sal, açúcar e as dietas mudam. Ao mesmo tempo, isso também cria a oportunidade para o pequeno agricultor com quem trabalhamos ser integrado em cadeias de valores que produzem alimento para as cidades e também de melhorar o valor nutritivo de muitos produtos que chegam.

Existe no país um recorte de perfil dos lares e das pessoas que mais sofrem com a insegurança alimentar grave, ou seja, a fome?

Normalmente, o que sabemos é que 70% das pessoas que são pobres e com fome moram em comunidades rurais. E em muitos casos, dependendo dos países, há uma população muito jovem, como na África. 

Todos os anos, de 10 a 12 milhões de novos jovens entram no mercado de trabalho, mas só 4 milhões de empregos são criados. Há falta de oportunidades, emprego e renda o que leva as pessoas a caírem na pobreza.

O Mapa da fome apontou que milhões de crianças no mundo continuam sofrendo com a má nutrição. Qual é o impacto da fome para as crianças?

O relatório fala de cifras alarmantes, mais de 120 milhões de crianças com menos de cinco anos estão malnutridas. Temos ao mesmo tempo mais de 35 milhões de pessoas que sofrem de obesidade. Isso claramente exige uma abordagem dupla, que as pessoas possam comprar alimentos e alimentos saudáveis. E que as crianças tenham acesso a alimentos nutritivos, com a nutrição correta.

O senhor se encontrou com ministros de estado. O que foi tratado nesses encontros?

Temos uma forte relação com governo brasileiro, estamos bem alinhados em termos de políticas de inclusão social, desenvolvimento agrícola, agricultura familiar, muitas áreas para adaptação climática, essas são nossas prioridades também. 

Boa parte dos debates tem a ver com, além de mobilizar financiamento, não só do FIDA, BNDES, BID, do governo, mas também compartilhar as lições aprendidas no Brasil sobre inclusão social e reforma agrária com outros países, e discutir como apoiar o Brasil na presidência do G-20 a partir do ano que vem para que a eliminação da fome seja um elemento importante.

Como o presidente Lula pode contribuir globalmente para o debate sobre a erradicação da fome?

O presidente Lula é um líder, ele já mostrou nos governos anteriores. Agora, uma diferenciação importante é garantir que as comunidades vulneráveis, os pobres rurais, estejam no centro das políticas. A inclusão social dessas comunidades, de mulheres, jovens, indígenas quilombolas, em grande medida, é uma diferenciação importante se comprado com as outras políticas que tem a ver com produção, mas nem sempre com a comunidade. Isso é o que distingue das políticas que estamos vendo agora. Isso se alinha bem com o DNA do FIDA.

O FIDA está lançando hoje em parceria com o BNDES um edital de fomento na agricultura familiar para ações focadas na segurança alimentar e na redução dos efeitos das mudanças climática. Quais ações concretas a gente pode esperar a partir desse edital? Quais resultados são esperados?

Há várias ações diferentes. Com relação a manejo de água, irrigação, são 21 mil cisternas de água que vamos criar e financiar. Muitas vezes, trata-se de garantir que haja acesso suficiente à água, porque sem água não há agricultura, muito menos negócio. E também garantir que as culturas plantadas possam resistir aos períodos de seca.

Esse projeto é especificamente para a região Nordeste. Por quê?

O foco no Nordeste é porque percebemos que as comunidades têm menos acesso a muitas das cadeias de valor de produção. É uma área atingida pela mudança do clima, pela seca. É a área onde há menos chuva no Brasil. E ao mesmo tempo, em alguns casos, há falta de acesso à terra para pequenos produtores, falta de acesso ao crédito rural. Para nós, é onde há a maior densidade de população real em termos de comunidades vulneráveis.

O projeto tenta mitigar os efeitos da mudança climática e preservar o meio ambiente. Mudanças climáticas são apontadas como uma das causas do aumento da fome. Qual o impacto?

No caso do mundo inteiro os desafios são variados e alguns estão no Brasil, como a seca, no semiárido. Há ciclones nos pequenos países do Caribe, furacões, a elevação do nível do mar, grandes variedades de temperaturas. No caso do Brasil, obviamente, trata-se da perda da biodiversidade da Amazônia, uma das características chaves do Brasil e uma ferramenta que o mundo conta para combater a mudança do clima.

Por que o FIDA espera alcançar os jovens nesta inciativa?

Não só no Brasil, mas em todo mundo estamos vendo que cada vez mais os agricultores têm idade avançada, agricultores normalmente com 50, 60 anos. Quando falamos com a população jovem de formas de gerar renda com tecnologia, já se interessam mais. Mas para dar certo para eles, tem que haver um sistema com treinamento e negócio, tecnologia certa, financiamento da terra, irrigação e é isso que trazemos.

O FIDA prevê oito novas frentes de investimentos voltadas ao combate de desiguales rurais. Por que o investimento nesses setores é importante?

A carteira que hoje estamos negociando é um programa de trabalho de US$ 900 milhões (cerca de R$ 4 bi). O mais importante é que isso pode crescer, ser expandido pelo governo e outros investidores. Mas o mais importante é que isso tem como alvo chegar naquelas populações em áreas remotas. É um empurrão inicial, um investimento para as comunidades. Sem isso não há capacidade de realmente entrar no setor produtivo.

Quais expectativas que o FIDA pretende alcançar no Brasil nos próximos anos?

O programa que apresentamos ontem com o Consórcio do Nordeste falamos em 1 milhão de pessoas, 250 mil famílias, para nós é muito importante ganhar escala nos investimentos para não chegar só a comunidades específicas, mas chegar a milhões de pessoas. As necessidades são imensas e queremos acompanhar o governo em sua luta contra a mudança de clima, com apoio a inclusão social de comunidades vulneráveis.


Fonte: O GLOBO