Inserindo nas leveduras as sequências genéticas das proteínas do leite, podemos ter leite e derivados sem usar animais

Os amantes da cerveja e do pão artesanal sabem que leveduras são úteis na indústria de alimentos. Mas e se estes microrganismos, além de garantir a cerveja, o vinho e o pão, agora pudessem completar a mesa, com leite e queijo? O leite artificial vem se tornando uma aposta quente dos investidores de biotech.

 Leveduras geneticamente modificadas produzem leite e queijo sintéticos, idênticos aos naturais. Empresas como a Better Dairy no Reino Unido, a Remilk em Israel e a Perfect Day nos EUA são exemplos de startups que já usam a fermentação para fabricar leite e derivados sem depender de uma única vaca. 

A Perfect Day já fechou contrato para vender proteínas do leite para Nestlé e Starbucks. Estimativas mostram que as empresas do ramo, chamado de fermentação de precisão, já conseguiram aproximadamente US$ 3 bilhões de investimento desde 2021.

A técnica de fermentação de precisão também não é exatamente nova. Desde a década de 1980, bactérias geneticamente modificadas produzem insulina humana. Na década de 1990, a mesma técnica começou a ser usada para fabricar quimosina, uma proteína essencial para coalhar o leite e fazer queijo.

Antes das bactérias, obter quimosina envolvia o abate de bezerros para extrair a proteína do estômago dos animais. A biotecnologia resolveu tanto um problema logístico quando de crueldade. Hoje, se você gosta de queijo, agradeça às bactérias que fermentam essa proteína, e agora também às leveduras que levam todo o processo para outro nível: em termos tecnológicos, não precisamos mais das vacas leiteiras, podemos fazer leite só com leveduras geneticamente modificadas.

Inserindo nas leveduras as sequências genéticas das proteínas do leite, podemos ter leite e derivados sem usar animais de criação. Além disso, sequências específicas permitem, caso se deseje, produzir leite sem lactose e sem proteínas que dão alergia. 

Como não há animais envolvidos no processo, também não há necessidade do uso de antibióticos, reduzindo-se assim o surgimento de bactérias multirresistentes, um grave problema de saúde pública. Pode-se reduzir o uso de água e da terra necessária tanto para pasto quanto para o plantio de soja e do milho usados como ração. 

Reduzindo a criação animal, contribuímos também para a redução do aquecimento global. Além disso, vegetarianos e veganos, ou qualquer pessoa que tenha restrição ao consumo de proteína de origem animal, poderá contar com uma alternativa. 

Diferentemente da carne cultivada, que parte de uma cultura de células extraídas de um animal, o leite de levedura parte de uma sequência genética clonada em um microrganismo. Não há animais no processo (descontados os humanos no laboratório).

O desafio tecnológico já foi resolvido. Restam desafios sociais e regulatórios. Nem todo mundo se sente confortável para consumir leite de levedura. Alguns produtores preferem chamar de “animal free milk”, algo como, “leite sem origem animal”. A regulamentação também demora, e ninguém, nos EUA e na Europa, deve ver esse leite nos supermercados antes do ano que vem.

Claro que é preciso levar em conta que fermentadores também consomem energia, caldo de cultura, água, e precisam de uma logística de produção industrial. Até o momento, tudo indica que, em termos ambientais, a fermentação tem chances de sair ganhando na comparação com a criação de gado leiteiro, consumindo menos água, menos energia e emitindo menos gases de efeito estufa, mas é preciso avaliar isso na medida em que a produção ganha escala. 

Se o investimento compensará e substituirá, junto com a carne cultivada, a pecuária contemporânea, só o tempo dirá. Mas, face a todos os desafios que o mundo encara hoje, de aquecimento global, doenças emergentes e segurança alimentar, vale a pena buscar modelos alternativos e sustentáveis.


Fonte: O GLOBO