Após regulação, financiamento coletivo por meio de plataformas vira alternativa de capital para negócios de tecnologia

Nas chamadas “Bolsas de Valores” das startups, ações, investidores e operação de abertura de capital têm nomes diferentes. Começa pelo ambiente de negociação: plataformas eletrônicas de investimento participativo, como define a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Quem faz aportes nas startups a partir delas está colocando dinheiro no que é conhecido como equity crowdfunding, uma modalidade de investimento autorizada pelo órgão regulador do mercado de capitais que se tornou uma fonte de captação de recursos para essas empresas de base tecnológica em tempos de vacas magras em meio aos juros altos.

O modelo de financiamento coletivo (crowdfunding) ganhou popularidade no Brasil com o surgimento de sites conhecidos como “vaquinhas virtuais”. Nesses casos, os aportes costumam ser voltados para causas, projetos, artistas ou até assinaturas mensais de iniciativas independentes. O retorno é um brinde ou recompensa. 

No caso do equity crowdfunding, a relação entre investidores e investidos é diferente. As regras também. É a partir da regulação estabelecida pela CVM em 2017que são definidos os parâmetros para captações, obrigações das plataformas e registros de ofertas.

No início, apenas quatro plataformas digitais faziam essa intermediação no país. Hoje, são mais de 60. O valor captado pelas startups com o modelo também cresceu: saltou de R$ 12,8 milhões, em 2017, para R$ 188 milhões em 2021. No ano passado, com o impacto da elevação da taxa básica de juros (Selic) até o patamar de 13,75% em que se mantém, houve redução dos recursos disponíveis com investidores bem mais cautelosos. Ainda assim, foram R$ 131 milhões em aportes, mais de dez vezes o total de cinco anos atrás.

Um dos negócios financiados nesse período foi o Grupo Muda, de economia circular e gestão de resíduos, que levantou R$ 2,3 milhões em junho de 2022, com venda de 7% da empresa. Uma das vantagens desse tipo de rodada de captação é a relação estabelecida com os investidores participantes, diz Alexandre Braz, CEO e fundador da empresa:

— Tivemos quase 100 investidores na rodada. Dois acabaram se tornando conselheiros do negócio. Outra investidora também nos ajudou a conseguir um aporte depois. É um modelo interessante também porque abre portas.

Para as startups, o modelo pode ser mais vantajoso em algumas situações. No caso dos negócios que estão dando os primeiros passos, o financiamento por crowdfunding é uma forma de levantar o capital inicial. Para empresas mais maduras, vira uma oportunidade de custear planos pontuais, como um investimento em um novo produto ou uma expansão, de forma mais ágil.

Alan Pedroso, fundador da Simple&Co, que atua na digitalização de marcas de alimentação, diz que a captação por crowdfunding é menos burocrática. No fim de 2022, a startup concluiu uma rodada coletiva que somou R$ 3,5 milhões, com R$ 1,5 milhão investido pela gestora de fundos Bertha Capital. Uma rodada convencional “levaria o dobro do tempo”, estima.

Além de mais plataformas operando esse mercado, o perfil de empresas que recorrem a esse financiamento também tem se ampliado. O ponto-chave para isso foi a mudança da regulação, em julho do ano passado. Desde então, a CVM permite que startups com receita de até R$ 40 milhões participem de rodadas coletivas. O limite de captação também subiu, para R$ 15 milhões.

Uma das maiores rodadas coletivas já realizadas no país foi a da gaúcha CowMed, no valor de R$ 6 milhões. A startup de Santa Cruz do Sul (RS) criou uma tecnologia que monitora dados de saúde de vacas com inteligência artificial. Thiago Martins, CEO e cofundador da empresa, conta que a opção pelo investimento coletivo tinha como objetivo atrair clientes e investidores estratégicos.

A rodada da CowMed foi uma das 63 realizadas pela Captable, uma das maiores plataformas que atuam neste mercado. Opera equity crowdfunding há três anos. Paulo Deitos, CEO e cofundador, nota que, no último ano, negócios de maior porte têm buscado o serviço.

— Estamos em negociação para o lançamento de algumas rodadas na faixa de R$ 7 milhões a R$ 15 milhões. O que predomina ainda são rodadas com startups menores, mas enxergamos que, no próximo ano, deve começar a ter uma diversidade maior — diz Deitos, que conta que um dos critérios de seleção das startups que entram na plataforma é a capacidade de inovação.

Como acontece no mercado acionário tradicional, uma startup que “entra” nessas “Bolsas” abre parte do capital para ser negociada com os investidores. Quem participa da divisão do aporte que a empresa precisa, passa a ter uma parcela do negócio. Na Bolsa de Valores tradicional, essa fatia é um conjunto de ações, que podem ser compradas e vendidas em qualquer momento. O ganho do investidor vem da diferença de preço entre o dia da compra e o de venda.

Com o equity crowdfunding, é parecido, mas acontece a partir de um grupo interessado em uma startups, que atrai pelo potencial de crescimento exponencial e acelerado. O ganho pode vir de algumas formas: quando a startup for vendida por um valor maior do que quando foi à rodada; por meio do recebimento de dividendos; quando a empresa decidir fazer uma oferta de recompra das partes dos investidores; ou caso venha a lançar ações numa Bolsa tradicional.

Aporte a partir de R$ 10

O valor para entrar num investimento coletivo varia de acordo com a plataforma, mas costuma partir de R$ 1 mil, caso da Captable e da SMU. Na DIVI•hub, o dono dos ativos pode decidir lançar cotas menores, de R$ 10, ou mais exclusivas, partindo de R$ 10 mil.

O maior risco para o investidor é que a empresa quebre. Nesse caso, todo o valor pode ser perdido. Para minimizar esse risco, as plataformas costumam filtrar quem pode entrar no processo de captação, com análise de histórico da empresa, da equipe, do produto ou serviço, do mercado de atuação, entre outros critérios.

O planejador financeiro Roberto Agi, da Associação Brasileira do Planejamento Financeiro (Planejar), lembra que o primeiro passo para o investidor que não está familiarizado com startups é entender a procedência da plataforma e se a tese da empresa faz sentido. Ele frisa que trata-se de um investimento de altíssimo risco, portanto, é preciso cuidado com o tamanho do patrimônio comprometido:

— É interessante pulverizar, para ter mais chance de acerto. Também não dá para concentrar muito do patrimônio porque é um ativo em que você pode perder tudo. Outro ponto é entender a porta de saída, ou seja, como funciona a venda desse ativo e a liquidez dele.

'Ações' viram tokens

Uma das inovações desse mercado vem acontecendo nas fases posteriores à primeira captação: a possibilidade de os investidores negociarem suas fatias nas startups num mercado secundário ou seja, para outros interessados no ativo. Participante de um teste regulatório da CVM, a plataforma SMU passou a oferecer esse tipo de negociação por meio de tokens (registros digitais).

— A gente faz a captação primária. O dinheiro sai do investidor e vai para a empresa. No secundário, com os tokens, o dinheiro sai do investidor e vai para outro investidor. O papel muda de mãos e quem faz esse registro é o token — explica Rodrigo Carneiro, sócio da SMU.

O mercado fica aberto no mesmo horário da Bolsa de Valores de São Paulo, a B3: de segunda a sexta-feira, entre 10h e 17h. Por enquanto, só três ativos são negociados. A média diária é de cem operações e o volume transacionado mensal já chegou a R$ 200 mil.

O mercado espera que, após o teste regulatório, a CVM publique normas para permitir que outras plataformas operem nesse sistema de negociações secundárias. Em nota, a autarquia diz que está “aberta ao diálogo e à escuta ativa com os agentes de mercado” e “permanentemente modernizando a regulamentação”.

Marcelo Carrullo, sócio da Drummond Ventures, avalia que o crowdfunding tornou mais acessível investir em startups, como uma alternativa aos grandes fundos que atuam nessa área, chamados de venture capital. Para ele, trata-se de uma democratização, para quem empreende (principalmente os pequenos) e para quem investe:

— Ser um cotista de fundo de venture capital é muito caro. A possibilidade de investir nas startups com valores baixos abriu o mercado.


Fonte: O GLOBO