Crime cresceu 8% um ano, com 37 ocorrências a cada 100 mil habitantes; meninas negras são as principais vítimas
O Brasil bateu o recorde no número de estupros registrados em um ano durante 2022, com 74.930 casos. O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira, mostra que esse tipo de crime cresceu 8,2% em relação ao ano anterior, com ocorrência de 37 casos a cada 100 mil habitantes no país.
A tendência de alta a longo prazo dos estupros, que aumentaram 50% em dez anos quando considerados os números absolutos, vai contra o que ocorre em outros tipos de crime. As mortes violentas, por exemplo, caíram 15% na última década.
Pesquisadores não têm uma explicação única para o aumento dos crimes sexuais que se enquadram nessa categoria. Uma hipótese é a de que parte do aumento se deva a uma melhoria nas notificações, e não uma alta real no tipo de crime.
Mudanças culturais e um avanço no empoderamento feminino podem explicar o fênomeno, principalmente quando as vítimas são mulheres adultas. A maioria das vítimas de estupro no Brasil, porém, é composta de crianças e adolescentes.
Em 2022, três a cada quatro casos desse tipo de crime no país caíram na categoria de "estupro de vulnerável", que engloba em sua maior parte as vítimas de até 14 anos. Seis de cada dez vítimas de estupro estão nessa faixa etária. (Uma fração menor de "vulneráveis" violentados envolve adultos com deficiência ou enfermidade, incapazes de declarar consentimento.)
Na opinião de Juliana Brandão, pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutora em direitos humanos pela USP, o estupro ainda é um crime muito subnotificado no país, e o aumento de casos não deve ter relação apenas com uma variação dos registros oficiais.
— Na nossa hipótese, a gente está trabalhando com a figura da escola como sendo o principal vetor de notificação oficial desses crimes — diz a pesquisadora. — Muitas vezes é o professor a professora que percebe uma mudança no comportamento da criança ou do adolescente.
O salto de notificações entre 2021 e 2022, ela afirma, pode ter relação com o tempo que as escolas permaneceram fechadas pela pandemia de Covid-19 no primeiro ano.
O contato com a escola é essencial para proteção de muitas das vítimas, porque o estupro ainda é majoritariamente um crime que ocorre em ambiente privado. Em 2022, as vítimas estavam em casa em 68% dos casos, e o autor do ataque era um conhecido em 83% das vezes, muitas vezes um familiar.
Como as mulheres foram a vasta maioria das vítimas (89%), que também eram negras em sua maioria (57%), o estupro vem se consolidando como um crime em que meninas negras são o principal perfil da população afetado.
— O estupro também é um crime que tem cor, e isso é pavoroso — diz Brandão, que vê nos números do anuário a assinatura do racismo estrutural. — As famílias negras provavelmente não estão conseguindo proteger essas crianças. São famílias que financeiramente também estão mais vulneráveis e isso vira mais um motor para desproteção social.
O Anuário de Segurança Pública aponta que a taxa de ocorrência de estupro varia bastante conforme o estado no Brasil, de 13,7 casos por 100 mil na Paraíba a 114 casos em Roraima, mas em nenhum lugar está efetivamente baixo.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que os dados oficiais ainda possuem uma lacuna enorme, e só 8,5% dos casos estejam efetivamente chegando às autoridades, o que dificulta o combate a esse crime.
Atendimento às vítimas
Para psicóloga Daniela Pedroso, coordenadora do ambulatório de violência sexual do Hospital da Mulher de São Paulo, é possível que um aumento na notificação do estupro explique a alta dos números, ainda que a taxa continue sendo pequena.
— A partir do momento em a gente vê uma maior preocupação da sociedade com a prevenção dos casos de abuso sexual, a gente nota que as pessoas vão buscar mais ajuda, e as crianças também — diz ela, que realça o aumento da preocupação com a educação sexual na virada do milênio.
— A educação sexual cuida de explicar para a criança que o corpo dela é so dela e que ninguém tem o direito de tocar. A partir do momento que a criança tem essas informações ela também vai buscar ajuda — afirma Pedroso.
A psicóloga realça, porém, a importância de as campanhas de conscientização estimularem as vítimas a buscar auxílio.
— Nós orientamos buscar o serviço de emergência o mais rápido possível — diz. — Existem medidas que podem ser tomadas até 14 dias, sendo que até três dias pode ser feita profilaxia para infecções sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV. Até cinco dias a gente pode fornecer também a contracepção de emergência.
Fonte: O GLOBO
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