Surpreendida por uma marretada no vidro do carro no centro de São Paulo, a artista plástica relata que vidros antivandalismo impediram tragédia maior e diz que discussão sobre infância nas ruas é urgente

"O sábado era de sol e eu e minha amiga Daniela estávamos indo ao Museu Catavento, no centro de São Paulo, para levar minha filha de 2 anos. Moramos na Zona Oeste, e o museu fica no Parque Dom Pedro II, perto de outro atrativo turístico muito procurado da cidade, o Mercado Municipal. Minha filha dormia na cadeirinha, no banco de trás. Estávamos atentas no entorno, pelo grande número de pessoas que vivem nas ruas, sob viadutos ou em praças.

Mesmo assim, a marretada no vidro do carro foi uma surpresa. Não vimos o homem, nem imaginávamos que pudesse surgir do nada, como num pulo diante da porta do passageiro. Dani foi muito rápida ao gritar "Acelera!" e minha reação foi imediata. Por sorte. Por um segundo e um milímetro não nos atingiram nem roubaram.

Um segundo poderia ser fatal. Minha amiga poderia ter sido atingida pela marretada ou os vidros do carro poderiam voar e atingir minha filha. O vidro esmigalhado continuou no lugar, graças a uma película antivandalismo que impediu que os cacos voassem para dentro do carro.

A primeira coisa que pensei foi na minha filha. Ela não acordou, não presenciou a violência. Só depois eu disse a ela que uma pedra havia atingido o vidro e por isso ele estava quebrado.

Mas o episódio me deixou muito sensível. Por mais que muita gente tenha passado por algo semelhante, não dá para naturalizar. Estar com uma criança no carro muda muito o cenário.

Que sintoma do capitalismo e do patriarcado é esse? Pude proteger minha filha, ela não viu o que aconteceu. Pude tratá-la como a criança que é.

Mas a gente vive num sistema de injustiça social muito grande. Pouco antes da pancada eu havia visto vi uma mãe, moradora de rua, atravessando a rua com suas crianças. Moram debaixo do viaduto, não podem ser protegidas da violência. Crescem vendo toda sorte de coisas. É como se o racismo começasse no parto. Uma maternidade racista, que condena as mães e seus filhos, principalmente as negras.

O vidro do carro representa essa separação da sociedade. Essa injustiça social que precisa ser discutida e mudada.

Daniela, minha amiga, é uma ativista contra a fome. É fundadora da startup social chamada @comidainvisível dedicada a evitar o desperdício de alimentos. Ensina a aproveitar tudo, integralmente, e conecta empresas que têm alimentos que perderam valor comercial com ONGs que podem levar comida para quem precisa.

Ainda estamos sob impacto do susto, mas já sabemos que precisamos conversar para ter ideias que possam mudar a vida das crianças que moram nas ruas. É preciso trabalhar para mudar a infância e protegê-la desse sistema alienado e falido das grandes cidades."


Fonte: O GLOBO