Vale a pena investir em formas criativas de popularização da ciência para encantar, cativar e estimular mudanças culturais e de políticas públicas

Pesquisadores brasileiros e espanhóis vêm usando inteligência artificial para identificar sons emitidos por botos e tucuxis na região amazônica, em uma parceria entre a Universidade Técnica da Catalunha, em Barcelona, e o Instituto Mamirauá de Desenvolvimento Sustentável, em Tefé, no Brasil. Ambas as espécies de golfinhos de água doce estão em extinção. O boto cor-de-rosa entrou na lista de animais ameaçados em 2018, e o boto-tucuxi, em 2021.

Identificar com precisão os sons emitidos pelos animais é essencial para acompanhar seus movimentos e monitorar populações. Usando inteligência artificial, cientistas conseguiram isolar os cliques e assovios emitidos pelos botos dos ruídos de fundo, como motor de barcos. Como os cliques e assovios são específicos e diferem entre as espécies, foi possível monitorar separadamente as duas populações.

Não é a primeira vez que sons são usados para a conservação de mamíferos aquáticos. Curiosamente, o estudo do canto dos botos foi publicado no mesmo mês em que a ciência perdeu Roger Payne, biólogo que foi o primeiro cientista a gravar o canto das baleias jubarte. Além do trabalho de pesquisa, Payne foi pioneiro em combinar ciência e arte para popularizar conhecimento e gerar conscientização ambiental. 

O álbum “Canções da baleia jubarte” foi um hit dos anos 1970, e tornou-se um hino do movimento de conservação. Payne também foi o fundador da “Ocean Alliance” (Aliança dos Oceanos), para pesquisa e ativismo ambiental, e participou na implementação de diversos programas na Sociedade de Conservação Ambiental dos EUA.

Usar os sons das baleias, musicalizados, para comover e emocionar os seres humanos foi uma ideia original e inspiradora. Som, afinal, é algo que sabemos reconhecer e que desperta curiosidade. O que será que os cantos significam para as baleias? Como usam estes sons para comunicação? Um dia poderemos entendê-los? Conversar com elas? Payne acreditava que ao divulgar algo que temos em comum com esses grandes mamíferos, o uso de sons como forma de expressão, seria mais fácil conscientizar as pessoas sobre a importância da conservação de todas as espécies do planeta.

Poucos dias antes da morte do pesquisador, um artigo assinado por ele apareceu na revista americana Time. Ali, contemplando o trabalho de sua vida, Payne escreveu:

“No meu ponto de vista, as descobertas científicas de maior consequência dos últimos 100 anos não foram E=mc2, placas tectônicas, ou o sequenciamento do genoma humano. Tudo isso foi monumental, claro, mas existe uma descoberta tão impactante que se não a levarmos a sério, vai nos mandar direto para o túmulo.

É a seguinte: todas as espécies, incluindo humanos, dependem de um conjunto de outras espécies para manter o mundo habitável para si mesmas, e cada uma destas espécies, por sua vez, depende de um outro conjunto de espécies, comuns ou diferentes do primeiro grupo, para manter o seu nicho habitável”.

Roger Payne também conta que foi extremamente criticado por seu trabalho, tanto de pesquisa como de ativismo. Seus críticos o acusavam de perder tempo tentando falar com baleias, quando deveria estar focado em problemas de seres humanos. Payne rebate a crítica dizendo que é justamente por colocar os interesses da humanidade acima de todas as outras formas de vida que a espécie humana se encontra, agora, diante de um dos seus maiores desafios.

Payne nos mostrou que vale a pena investir em formas criativas de popularização da ciência para encantar, cativar e estimular mudanças culturais e de políticas públicas. Graças ao seu trabalho, a Comissão Internacional Baleeira emitiu uma moratória proibindo a caça comercial de baleias em 1982. Acho que ficaria feliz em saber que agora, além de ouvir as baleias, podemos ouvir os botos da Amazônia.


Fonte: O GLOBO