Na modalidade, o consumidor paga um preço menor por uma viagem sem data predefinida nem reservas confirmadas em empresa aérea ou hotel
A crise da 123milhas, que surpreendeu clientes ao anunciar na sexta-feira a suspensão de pacotes e emissão de passagens de sua linha promocional, a Promo, previstos para o período de setembro a dezembro deste ano já traz impacto para o setor de turismo. Além disso, expõe a fragilidade do modelo de venda de pacotes flexíveis, no qual o consumidor paga um preço menor por uma viagem sem data predefinida nem reservas confirmadas em empresa aérea ou hotel.
Em maio, o governo já havia proibido o Hurb de vender pacotes nesse modelo, depois que a empresa não conseguiu honrar viagens vendidas.
Segundo representantes do setor de turismo, o cancelamento de viagens por essas plataformas deixa o consumidor inseguro. Além disso, já restringe e encarece o crédito a agências e operadoras.
O ministro do Turismo, Celso Sabino, afirmou ontem que a 123milhas teve seu registro de cadastro na pasta suspenso, o que bloqueia o acesso a linhas de crédito de bancos públicos. O ministro disse ainda que o modelo de negócio de todas as empresas similares, que atuam no setor de agências de viagens, precisa ter sua viabilidade comprovada.
— Estamos oficializando ao Ministério da Fazenda para que a companhia, já que teve seu cadastro suspenso, não faça jus aos benefícios tributários que são concedidos através da lei do Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos) — afirma Sabino, acrescentando:
— Estamos levantando todos os dados do setor, de companhias que praticam o mesmo modelo de negócio no Brasil para apurar o funcionamento, a viabilidade, a segurança jurídica desse modelo de negócio no nosso país.
Insegurança do passageiro
O ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que haverá punição para a 123milhas se forem identificadas irregularidades na atuação da empresa:
— O Código de Defesa do Consumidor está sendo aplicado, tanto na dimensão de encontrar uma solução, como de punir a empresa, caso se configurem, infelizmente, lesões aos direitos das pessoas.
Em comunicado oficial, a empresa atribuiu a decisão de suspender os pacotes à “alta pressão da demanda por voos, que mantém elevadas as tarifas mesmo em baixa temporada, e a taxa de juros elevada.”
Para Jeanine Pires, consultora do setor de turismo e ex-presidente da Embratur, a justificativa não é aceitável:
— Eles criaram uma narrativa de que algoritmos e estudos mostravam que o pacote ia custar um valor muito baixo em um período específico. Desde março há aumento enorme de passagens aéreas, e era claro que seguiria assim. Venderam uma ilusão ao consumidor. É um mecanismo para gerar caixa e brincar com o dinheiro das pessoas, aplicar esse dinheiro. E é algo muito sério, porque as pessoas compraram um sonho, o Natal com a família, a visita à mãe, a viagem de lua de mel — diz.
No mercado de turismo, uma passagem aérea ou reserva de hotel em tarifa cheia — aquela válida por um período de até um ano e com flexibilidade para remarcação de datas sem aplicação de multas — tem o maior preço justamente para garantir a viagem independentemente do período. Hurb e 123milhas construíram um modelo de pacote que subverte essa lógica.
— Empresas que atuam nesse modelo de viagem aberta, e elas são a minoria no mercado, vendem a perspectiva de uma viagem. Não é uma prática proibida, mas é de alto risco. A empresa que vende assim tem de honrar o pacote, o risco é dela — diz Fabiano Camargo, presidente da Braztoa, que reúne mais de 53 operadoras, ressaltando que nenhuma das associadas pratica esse modelo. — Infelizmente, os bons pagam pelos não bons. Gera insegurança no consumidor porque ele não consegue distinguir uma coisa da outra.
No mercado, já há redes hoteleiras que deixaram de aceitar reservas da 123milhas. A preocupação é com o efeito que essa onda de cancelamento de pacotes tem sobre o hóspede, sobretudo nos empreendimentos de menor porte.
— Hoje, o mercado de hotelaria está em grande parte nas mãos das plataformas digitais de viagens (para reservas). As pessoas ficam com medo de reservar hospedagem, de viajar — diz Alfredo Lopes, presidente da Hotéis Rio, que reúne estabelecimentos da capital fluminense.
Nas palavras de um alto executivo do setor de agências de viagens, as crises de 123milhas e Hurb geram perdas colaterais para as demais empresas. “Rouba vendas de quem trabalha regularmente”, resumiu, principalmente no segmento de viagens mais em conta.
Companhias aéreas também começaram a reagir. A American Airlines divulgou comunicado a empresas que distribuem seus bilhetes, pedindo que não vendam a agências de viagem on-line, como por exemplo a 123milhas. A companhia aérea tem canal próprio para venda de passagens a plataformas digitais. Procurada, não respondeu até a publicação desta reportagem.
Em seu site, a 123milhas ofereceu como alternativa aos clientes a devolução do valor pago em vouchers acrescidos de correção monetária de 150% do CDI para compra de passagens, hotéis e pacotes na própria empresa.
Advogados ouvidos pelo GLOBO e a Secretaria Nacional do Consumidor argumentam que oferecer apenas essa alternativa é ilegal, já que o Código de Defesa do Consumidor prevê que os clientes devem ter a chance de receber de volta a quantia gasta em dinheiro, com correção monetária, ou exigir o cumprimento da oferta por outro prestador.
Segundo a advogada Luciana Atheniense, especialista em direito do turismo, alguns de seus clientes receberam a opção de devolução em voucher parcelado. Uma viagem para Paris por R$ 2 mil foi devolvida em quatro vouchers de R$ 500, que não poderiam ser usados cumulativamente.
— Que garantia o comprador vai ter que esse voucher de quatro vezes vai ser pago no ano que vem? A confiança está abalada, e a empresa impõe que o consumidor continue vinculado a ela — critica.
No Hurb, agora mês flexível
Procurada, a empresa não comentou a crítica da advogada ou a questão da devolução parcelada. Desde 1º de agosto, a empresa foi alvo de 1.240 queixas no Procon-SP, das quais mil foram feitas entre sexta-feira e a manhã de ontem. De janeiro até 17 de julho, foram registradas 1.753 reclamações.
Em maio, a Secretaria Nacional do Consumidor, ligada ao Ministério da Justiça, proibiu o Hurb de vender pacotes flexíveis depois que a empresa deixou vários clientes sem viajar. No site da empresa, é possível ver que ela adota agora a modalidade de “mês fixo”, com compras de pacotes para meses como outubro de 2024, por exemplo.
Para especialistas, segue o mesmo princípio do pacote flexível. A Senacon vai analisar. O consumidor só pode mudar a data, que é escolhida pela agência, se apresentar “laudo médico que impeça a viagem na data indicada.”
Procurado, o Hurb disse que cumpre a determinação da Senacon e não está vendendo pacotes de data flexível “nos moldes da decisão”: “A empresa aproveita para reiterar seu comprometimento com a realização das viagens adquiridas na plataforma, respeitando sempre o melhor interesse de seus consumidores e parceiros.” (Glauce Cavalcanti, Lauriberto Pompeu, Letycia Cardoso, Ana Flávia Pilar, Luciana Casemiro e Renan Monteiro)
Fonte: O GLOBO
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