Sob Lula, doença já atingiu mais de 12 mil pessoas da região; relatório produzido por indígenas classifica cenário como 'preocupante'

Em janeiro, a crise humanitária no território Yanomami ganhou repercussão mundial — e agora, passados pouco mais de seis meses e sob a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), organizações indígenas repercutem os avanços e entraves que ainda estão presentes na região. É o caso, por exemplo, dos muitos registros de malária, que formam um cenário “preocupante”, além das mortes por “causas preveníveis” e dos avanços de garimpeiros ilegais.

No início deste ano, imagens expuseram um panorama de desnutrição grave, infecções respiratórias e doenças diarreicas, o que fez com que especialistas em saúde classificassem a situação como “desastrosa”. Na ocasião, o Ministério da Saúde chegou a decretar estado de emergência para combater a desassistência. Hoje, no entanto, os casos de malária continuam graves. Até julho deste ano, foram registradas novas 12.252 ocorrências, o que corresponde a quase 80% do total de 2022.

Até julho deste ano, foram registradas 12.252 ocorrências de malária, o que corresponde a quase 80% do total de 2022 — Foto: Editoria de Arte

Os dados foram divulgados nesta quarta-feira pelo relatório “O sofrimento continua: Um balanço dos primeiros meses da emergência Yanomami”, produzido pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) em parceria com a Associação Wanasseduume Ye’kwana (SEDUUME) e Urihi Associação Yanomami.

Para estas instituições, os elementos indicam “o resultado de um processo” que “já estava em curso”, embora também demonstre que as ações do novo governo “não conseguiram frear significativamente o avanço da doença”.

— Continuamos a morrer. Médico da Sesai, equipes do Ministério da Saúde, eles não conseguem chegar nas comunidades. Aracaçá, Palimiú, Homoxi, Maloca Macuxi, baixo Catrimani... Continuamos morrendo muito no Auaris, onde está o quartel do Exército. 

Os médicos não conseguem chegar lá, também não tem apoio, nem medicamentos, equipamentos para poder trabalhar no poló base de Auaris, e na comunidade. Não consegue chegar porque não tem transporte de motor, não tem gasolina, para poder deslocar nessa missão de chegar lá. Tudo isso por conta da presença dos garimpeiros. Então eles estão voltando — afirma o líder Davi Kopenawa ao GLOBO.

'Inércia na estratégia'

De acordo com o documento, no contexto da emergência Yanomami, as ações de entrega de cestas básicas e kits de ferramentas foram chamadas de “ajuda humanitária” — algo necessário, segundo as instituições, para estabilizar as comunidades mais vulneráveis. Na prática, porém, o Plano de Assistência entregue pela Funai em fevereiro não foi totalmente realizado. Caso visto, por exemplo, no número de cestas: o governo previa a distribuição de 50 mil, mas apenas metade foi entregue.

Mesmo os alimentos distribuídos receberam críticas. Isso porque, segundo o relatório, foram oferecidos itens como charque e sardinha, que “não são bem aceitos pelas comunidades”. Em alguns casos, indígenas trocaram a carne por arroz nos acampamentos vizinhos “para saciar a fome”. Somado a isso, outro elemento foi destacado: a distribuição. Não houve identificação de áreas prioritárias, e também não existiu um protocolo de entrega para garantir que as cestas chegassem a todos.

Já com relação à saúde, o relatório aponta que a atual gestão tem tido “enorme dificuldade” para estabilizar a crise. Entre as razões para não retomar ações de promoção e prevenção no território Yanomami estão: a falta de infraestrutura em algumas unidades; a ausência de segurança para a equipe médica; e a falta de mão de obra. Para as organizações, a insegurança reflete a “falta de coordenação entre as ações de combate ao garimpo e a tentativa de recuperar o sistema de saúde”.

Os informes do COE Yanomami também mostram a pouca alteração no quadro da saúde geral da população indígena nos últimos seis meses — Foto: Editoria de Arte

Os informes do COE Yanomami também mostram a pouca alteração no quadro da saúde geral da população indígena nos últimos seis meses. Das 65 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSIs) da Terra Indígena Yanomami (TIY), seis ainda estão fechadas, segundo o relatório. E, no caso do perfil de óbitos, as organizações destacam que há uma “inércia na estratégia de atenção à saúde”, e “a manutenção do modus operandi dos anos anteriores”.

Somente em Auaris (RR), os casos de malária mais que triplicaram, chegando a 649 ocorrências. Já no primeiro trimestre deste ano, o número de casos chegou a 2.170, caindo para 1.731 no trimestre seguinte. De acordo com as organizações, é “provável que o aumento esteja associado à expansão do garimpo”. O documento levanta a hipótese de que a doença tenha sido “importada”, sem que “o serviço de saúde tomasse as providências necessárias para controlá-la”.

Ouvido pelo GLOBO, o secretário especial de saúde indígena, Ricardo Weibe Tapeba, vinculado ao Ministério da Saúde, admite a fragilidade no atendimento a todas as comunidades indígenas do território e reconhece que a política da pasta na região está "esfacelada" e as ações dos agentes esbarram, sobretudo, na presença maciça dos garimpeiros, o que coloca o trabalho dos profissionais de saúde sob risco.

— Precisamos entender que, quando assumimos, descobrimos uma tentativa de corte do orçamento da saúde indígena de 59% e estamos tentando mudar isso. Nós já tínhamos recebido alertas da sala de situação da Sesai e da Funai de que a situação era de extrema gravidade, com unidades de saúde precarizadas, sete polos-base fechados, mas que agora todos já foram restaurados. Mas o que nos atrasa são os problemas de segurança no território — afirma.

De acordo com Weibe, os números de casos de malária aumentaram de fato na região, mas muito por conta dos exames feitos a partir de agora, o que não ocorria, segundo ele, no governo anterior.

— Reconhecemos que há uma fragilidade nessa logistica, precisamos do apoio de outras áreas e pastas. A Terra Yanomami é prioridade absoluta para Sesai, Ministério da Saúde, e o governo como um todo. O índice de malária subiu e subiu mesmo, mas porque nós começamos a fazer os exames e os diagnósticos. Encontramos muitos casos de subnotificação ou falta de notificação sobre óbitos de malárias — continua Weibe.

— Infelizmente os garimpeiros armaram os indígenas, o que dificultou ainda mais a presença dos agentes de saúde , plano de desintrusão e desarmamento. Eles foram induzidos a se armarem e isso tem gerado conflitos internos. Esses seis meses foram focados mais em salvar vidas, mas as ações de rotina e de prevenção de doenças estão mesmo paralisadas no território — admite.

Combate ao garimpo

Segundo o Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal (SMGI), de janeiro a junho de 2023, a atividade seguiu crescendo na TIY. Ao todo, foram cerca de 219 hectares impactados — o equivalente a aproximadamente 220 campos de futebol, representando um aumento de 4% em relação a dezembro de 2022, quando a área total afetada superou a marca dos 5 mil hectares. Se comparado ao mesmo período do ano passado, porém, nota-se uma “tendência de desaceleração”.

Reprodução de fotos de garimpeiros na TIY que divulgadas em redes sociais — Foto: Reprodução

Entre as ações de destaque do governo está a estratégia de “controlar o espaço aéreo e o bloqueio dos acessos fluviais e terrestres”. O relatório pondera, no entanto, que alguns pontos poderiam ter sido diferentes. É o caso da decisão de não fechar completamente os acessos à TIY para a logística garimpeira, e manter aberto três “corredores” com intuito de “viabilizar a saída espontânea dos criminosos” ao longo de dois meses.

Além disso, em 30 de janeiro, Lula assinou um decreto que determinou a criação de uma Zona de Identificação de Defesa Aérea para o controle do acesso durante o período de emergência de saúde. A operação “Escudo Yanomami”, porém, só manteve a restrição total de voos do garimpo por seis dias. Para as organizações, pessoas associadas ao tráfico humano também lucraram com a abertura dos “corredores”.

O documento destaca que a principal crítica à estratégia adotada pelo governo para a realização das operações é a ausência de uma coordenação, “que, além de ter um maior diálogo com as organizações indígenas e comunidades, pudesse articular ações de comando e controle, com ações de ajuda humanitária e de atenção à saúde”.

Procurada, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não respondeu até a última atualização desta reportagem.


Fonte: O GLOBO