Desde o novo decreto de Lula, queda de faturamento chegou a 90% e alguns estabelecimentos estão com estoques de armas de uso restrito parados. Alguns que seriam inaugurados no início do ano não puderam abrir as portas

Na gestão do ex-presidente Bolsonaro, Brasil teve aumento de 1.400% em clubes de tiros. Eles passaram de apenas 151 estabelecimentos em 2019 para 2.038 no ano passado, de acordo com dados do Exército. 

A expectativa é de uma queda drástica no faturamento e no total de casas, com as restrições impostas pelo novo decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que voltou a proibir calibres de uso restrito, como as pistolas 9mm, e reduziu o número de armas autorizadas para CACs (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador).

À frente da Secretaria de Segurança da Organização dos Estados Americanos (OEA) há pouco mais de um mês, o advogado Ivan Marques, que elaborou o documento que serviu de base ao novo decreto de Lula, diz que a reação é natural para conter "aberrações" como o fato de o Brasil ter hoje cerca de um milhão de armas em circulação. 

Ele lembra que, quando o Estatuto do Desarmamento foi aprovado há cerca de 20 anos, o processo também foi de alta restrição, com fechamento de 90% das lojas de armas. Hoje o impacto é mais sentido porque, além da megaestrutura que surgiu com a flexibilização das leis, também houve um aumento dos aficionados pelo mercado armamentista.

Explosão de CACs

— Saímos da casa de 100 mil CACs para quase 750 mil. Considerando que compraram ao menos uma arma, dá uma dimensão do universo. É preciso entender as consequências disso. Uma arma comprada em 2020 pode durar 50 anos ou mais, gerando efeitos na sociedade. É um bem durável. Pode ser usada para diversão? Pode. 

Para dissuadir uma agressão? Sim. Mas, em última instância, é usada para ferir ou matar. Esse um milhão de armas agrega trabalho para a polícia, um problema de saúde, porque o aumento de circulação provoca mais acidentes, violência de gênero. Existem consequências reais — afirma Marques.

Maior fábrica de armas do país, a gaúcha Taurus, que viu suas ações saltarem mais de 500% pouco antes do início da gestão passada, com bons ares se abrindo ao setor, já anunciou a demissão de mais de cem funcionários. 

O presidente da empresa, Salesio Nuhs, classificou de sufocantes as novas diretrizes para o setor que “emprega mais de 70 mil pessoas, tem faturamento anual de cerca de R$ 13 bilhões e recolhe R$ 2,8 bilhões em impostos por ano”.

Um dos pontos mais polêmicos do decreto de 21 de junho foi a redução do número de armas que civis podem ter acesso para defesa pessoal e também o total de armamento e munição para CACs. Entre as armas, a pistola 9mm, calibre mais vendido nos últimos anos, volta a ser de uso exclusivo das forças de segurança. A fiscalização também será gradualmente transferida do Exército para a Polícia Federal.

Como reação ao decreto que torna mais rígido o controle de armas no país, deputados ligados à bancada da bala apresentaram uma proposta que revogaria a nova legislação. Até o momento, 54 parlamentares assinaram o projeto. 

Para eles, houve uma “exacerbação do poder regulamentar”. A proposta, que ainda não passou pelas comissões do Congresso, é fruto de uma articulação entre as bancadas da bala e do agro, mas não ganhou fôlego nem na Câmara nem no Senado.

Lojas, fábricas e importadores estão com estoques cheios, à espera de um programa de recompra prometido pelo governo. O movimento nos clubes de tiro caiu, e os protestos vão de pessoas comuns a atletas.

Presidente da Confederação Brasileira de Tiro Defensivo e Caça, o advogado Sergio Bitencourt, de 50 anos, afirma que o novo decreto fecha praticamente todos os estandes do país por estes não serem mais permitidos a um raio de um quilômetro de instituições de ensino. 

Dono de uma loja de armas e um clube, o Defender, em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, ele conta que teve uma queda de 95% e 75% no faturamento de seus estabelecimentos, respectivamente. Ele já demitiu 50% dos funcionários.

— O novo decreto jogou todo mundo para a ilegalidade — afirma Bitencourt. — As lojas estão com estoque de armas (antes permitidas e agora restritas) que não podem vender, principalmente as 9 mm. Cerca de 95% das minhas são desse calibre.

Nem abriu as portas

Aos 56 anos, Weimando Dijkstra, produtor rural em Santa Catarina, resolveu, com a mulher, chef de cozinha e praticante de tiro, investir R$ 6 milhões no que seria o CTK Porto Belo. Logo após o aval do Exército no ano passado, a nova gestão proibiu a emissão de novos Certificados de Registro. 

Indignado, Dijkstra fez um vídeo questionando o que faria do sonho, que virou elefante branco com detalhes como lago com carpas e restaurante. Hoje, funciona apenas a doceria. Dijkstra desistiu do negócio e assumiu o prejuízo, até porque o estabelecimento é perto de uma escola.

— Acabaram com a gente. Isso aqui também é uma escola, uma escola de tiro — critica. — Só para abrir levei três anos até obter a documentação, ainda no governo Bolsonaro. Desisti.

O promotor Luciano Lara, de 45 anos, atleta da Confederação Brasileira de Tiro Prático, discorda de que houvesse facilidades excessivas. Morador de Três Lagoas, no Mato Grosso Sul, Lara afirma que o atleta nunca teve “vida fácil” no Brasil. 

Para obter um certificado de registro de CAC, uma espécie de documento de identidade da categoria, ele estima que era preciso entre três e seis meses, mesmo no governo Bolsonaro. O pedido de um acessório de atirador demorava até um ano e de uma arma importada, dois.

— O atleta nunca teve sossego— desabafa Lara, ressaltando que o tiro trouxe ao Brasil sua primeira medalha de ouro olímpica, em 1920, nos Jogos da Antuérpia.

Para Melina Risso, diretora de Pesquisa do Instituto Igarapé, o novo decreto é “central e necessário” para restabelecer uma política de controle de armas baseada na racionalidade:

— É importante entender que, no Brasil, assim como em todos os países do mundo, com exceção dos EUA, a arma é uma concessão do Estado. Portanto, precisa regular e manter equilíbrio sobre a quantidade e tipo de arma acessível.

O importador Pedro Pasolini, de 35 anos, diretor da BR Weapon, tem contabilizado prejuízos. Ele diz que perdeu 90% do faturamento e demitiu 90% dos funcionários.

— Em sete meses de mercado parado, tive um prejuízo de milhões de reais. O segmento está sendo tratado com vingança e ideologia —critica Pasolini.

Autor do livro “Armas para quem?”, o policial federal Roberto Uchôa, integrantes do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acredita que o decreto irá acabar com o “caos” disseminado com a evasão de armas legais para o crime.

— Muita gente ganhou dinheiro nessa festa das armas, mas ao mesmo tempo observamos inúmeros casos de desvios de armas para criminosos. Neste período, foi permitido que fuzis e pistolas, antes restritos a forças de segurança, fossem adquiridos pela população. O que será dessas armas? Não sabemos ainda.

(Colaborou Gabriel Sabóia)


Fonte: O GLOBO