Universidade tem modelo de financiamento com ICMS de São Paulo, além de ensino e pesquisa dificilmente replicável por outras brasileiras. Foco agora é mercado de trabalho

Eleita recentemente a melhor universidade da América Latina e 85ª do mundo, segundo o QS World University Ranking 2024, a Universidade de São Paulo (USP) discute realizar mudanças na grade curricular da graduação para aproximar os alunos do mercado de trabalho. Segundo o reitor Carlos Gilberto Carlotti, a ideia é que até o ano que vem todas as faculdades da USP já tenham feito essa discussão e comecem a implementar as atualizações.

— O que mais vai ter impacto nos próximos anos é a qualidade da graduação, e como estamos formando novos alunos com novas habilidades para esse mercado de trabalho desconhecido. Não basta ter apenas conhecimento teórico. Já estamos fazendo reuniões para ter currículos mais atualizados, com menos tempo dentro de sala de aula e mais fora, com atividades de extensão — conta o reitor.

A universidade tem hoje mais de 60 mil alunos matriculados na graduação, segundo dados do ano passado — além de quase 30 mil na pós-graduação e outros 184 mil em atividades de cultura e extensão. Para Carlotti, a preocupação da universidade em diminuir a distância entre a formação universitária e a entrada no mercado de trabalho garantirá, também, boas avaliações em rankings no futuro.

—Tenho certeza que daqui a dois ou três anos isso também vai ser captado para os rankings. Esperamos que no ano que vem todas as faculdades da USP já tenham feito essa discussão e comecem a implementar novas grades curriculares, com novas formas de ensino ativo, reformando nossos espaços de sala de aula e biblioteca — diz o reitor.

Empregabilidade e sustentabilidade

A empregabilidade pesa no desempenho da USP nos rankings internacionais, que têm acrescentado este e outros quesitos na avaliação, para além de números de publicações e pesquisa.

— No passado os rankings eram muito concentrados na produção científica, o que naturalmente privilegia as universidades americanas e europeias. Mas, ultimamente, elementos como empregabilidade e sustentabilidade têm ganhado espaço. E isso favoreceu a USP, que tem empregabilidade destacada no contexto brasileiro — diz Ronaldo Mota, membro da Academia Brasileira de Educação e ex-secretário nacional de Educação à Distância.

Segundo o reitor Carlotti, a quantidade de pesquisas na USP voltadas ao tema de sustentabilidade também pesou na avaliação. E uma tentativa, acelerada nos últimos anos, de atrair centros internacionais ao campus da capital paulista, caso do Instituto Pasteur, da França, e do ICGEB, ligado à Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido).

Orçamento turbinado

Na base das boas avaliações está também o maior orçamento entre as grandes universidades do país – e isso ampara, em boa parte, a dificuldade de que o modelo da USP seja replicável por aqui. Desde 1989, a Universidade de São Paulo é beneficiada por uma lei estadual que concede 9,75% da arrecadação da cota-parte do ICMS do estado mais rico do Brasil às três universidades paulistas.

A USP, maior delas, fica com pouco mais da metade dessa cota-parte (5 pontos percentuais dos 9,75%), o que lhe garante cerca de RS 7,5 bilhões anuais do tesouro estadual. A Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) dividem o restante (2,3% e 2,2%, respectivamente), o que soma cerca de R$ 3,7 bilhões para cada. A Unicamp, aliás, ficou situada como segunda melhor universidade brasileira e oitava na América Latina, de acordo com o mesmo QS World University Ranking 2024.

Estudantes na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP: universidade conta com 60 mil alunos na graduação, quase 30 mil na pós-graduação e outros 184 mil em atividades de cultura e extensão — Foto: Edilson Dantas

— Isso (o direito à cota-parte do ICMS paulista) permite uma regularidade de financiamento que nenhuma outra universidade brasileira tem. E oferece uma previsibilidade orçamentária sem concorrência com as federais, que praticamente negociam suas verbas ano a ano, sem saber o que vai acontecer. E vimos o que aconteceu com elas no governo anterior, quando sofreram com falta de verba até para pagar limpeza, segurança, luz — lembra Mota.

Carlotti reconhece que a previsibilidade orçamentária faz toda a diferença. Além de permitir que a universidade pense programas de investimento de até quatro anos, sem limitação a um ano fiscal, oferece ferramentas para trabalhar a permanência estudantil.

— É um tema latente. Se não souber quanto vamos receber, como manter bolsas de seis meses, um ano? Hoje nossas bolsas de graduação duram até o fim do curso. O aluno sabe que vai receber. E isso não só diminui a evasão como permite que ele se concentre no que é importante, que é o ensino. Não fica mais preocupado se vai ter bolsas ou não — admite o reitor da USP.

A discussão da reforma tributária, que poderia mexer com a distribuição da cota-parte do ICMS às universidades, chegou a acender um alerta entre as paulistas. Mas, segundo Carlotti, em conversas com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, os reitores receberam garantias de que haverá outras formas de assegurar que as universidades recebam o mesmo valor distribuído nos últimos anos.

— É muito difícil que outras universidades reproduzam a mesma situação. Há federais com áreas fortes de pesquisa, como UFRJ, UFMG, UFRS, mas ainda estão distantes do modelo da USP que, além do financiamento, tem mais flexibilidade no uso de recursos. As federais acabam muito engessadas: o dinheiro que recebem é quase integralmente para pagar salários, sem muitas possibilidades de contratação — explica o sociólogo Simon Schwartzman, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE.

— A USP, por outro lado, tem mais autonomia para fortalecer ou reduzir investimentos em determinadas áreas. Ainda não é comparável às internacionais, mas em relação às federais e outras paulistas, tem mais capacidade gerencial de seus recursos — acrescenta o sociólogo.

O cofre estadual é a fonte de maior recurso, mas a USP conta ainda com outras formas de financiamento. De um lado, está a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que concede 40% de verba a projetos absorvidos dentro da universidade. Empresas que desejam realizar pesquisas dentro da universidade, na área de desenvolvimento de novas tecnologias de energias renováveis, garantem outros cerca de R$ 300 milhões captados pelos pesquisadores. E uma infinidade de cursos de extensão, que reúnem quase 185 mil alunos, também garantem o mesmo valor, em média, ao ano.

Essas propostas, prevê Carlotti, devem aumentar desde a divulgação do ranking.

— Nosso contato com o setor público fica mais qualificado, e isso se torna um cartão de visita para nos apresentarmos. E já aumentou a busca de parceiros internacionais por uma colaboração com a universidade. Isso nos apresenta ao mundo — afirma.

Concorrência internacional

A internacionalização vinha sendo um ponto débil das universidades brasileiras, USP incluída, diante de concorrências potentes nos Estados Unidos e Europa.

— A USP é, de fato, a melhor universidade do Brasil e da América Latina. É grande, tem uma pós-graduação ampla, área de pesquisa forte, e forma a elite intelectual do estado de São Paulo e do país. Mas ainda é pouco conhecida internacionalmente — diz Simon Schwartzman.

A universidade ainda é muito “endógena”, opina: os professores da universidade são, em geral, formados pela própria USP.

— Nos Estados Unidos, uma universidade dificilmente contrata um ex-aluno. Na Alemanha, para ser promovido, um professor precisa ser convidado para outra universidade. Na USP há um esforço grande de aumentar a diversidade social, com cotas para alunos de diferentes condições, mas essa diversidade não acontece tanto do ponto de vista de professores e internacionalização. E, por estar amarrada ao nível salarial de São Paulo, a universidade muitas vezes não consegue pagar salários competitivos de nível internacional — acrescenta Simon Schwartzman.

A Constituição Federal contempla, no artigo 207, que as universidades brasileiras devem obedecer “ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

— O pressuposto é que exerçam os três: que ensinem bem porque produzem Ciência na área que ensinam. E a USP pratica bem essa indissociabilidade. É seu mérito, ela é bem estabelecida, mas também acaba se tornando mais conservadora — ressalta Mota. — Fui secretário nacional de EAD em 2005, e me lembro que a USP teve dificuldades em aceitar a ideia da educação à distância. Na época, estava tão convencida de suas metodologias clássicas e tradicionais, que se mostrou refratária à novidade. Ainda existe um forte viés acadêmico.

O reitor da USP reconhece que a cobrança é grande, e que a nova posição no ranking fortalece isso.

— Ficamos na 85ª posição mundial, mas me perguntam quando chegaremos aos 50 ou 10 primeiros. É um estímulo e uma cobrança, de que precisamos ter novos planos, pois se seguirmos fazendo as mesmas coisas, não vamos seguir avançando. A sociedade muda, o ensino muda, e queremos estar na vanguarda. E com ações para melhorar a universidade. A melhoria no ranking é consequência — diz o reitor.

Existe um cenário que precisa funcionar internamente, lembra Simon. Para além dos rankings internacionais, o Brasil possui universidades cujo foco é regional, com relevância para as regiões em que se localizam.

— A USP pode, e o Brasil precisa, de instituições que participem desse circuito internacional. Mas não é para todo mundo. Há uma tendência nos últimos anos, que cresce com esses rankings, de que os países procurem especializar algumas instituições, como uma política de governo. A Alemanha, por exemplo, seleciona quais têm condições de participar da área de pesquisa de ponta. Ou quais são as que demandam mais investimento para qualificação — conta Simon Schwartzman.

— No Brasil, há uma discussão de como se ampliar o sistema paulista e abranger mais gente, mas isso não se dará pelo modelo da USP. Temos um setor privado que responde por 75% do Ensino Superior. E precisamos pensar também em ensino técnico, educação à distância, em ações que atendam a uma população diversa como a nossa — acrescenta.


Fonte: O GLOBO