Uma parceria entre estes locais e serviços de atenção básica de saúde permitiria que os próprios líderes religiosos encaminhassem seus fiéis para atendimento médico adequado

Resolução recente do Conselho Nacional de Saúde pede, em sua diretriz 46, o reconhecimento de religiões de matriz africana e de seus locais de culto como equipamentos de saúde pública. A forma como isso se daria é deixada em aberto, o que a princípio permite várias interpretações.

Fazendo uma interpretação neutra, a diretriz pode ser vista como uma ideia interessante. Não é incomum que locais de congregação religiosa sejam portas de entrada para queixas de saúde física e mental. Uma parceria entre estes locais e serviços de atenção básica de saúde permitiria que os próprios líderes religiosos encaminhassem seus fiéis para atendimento médico adequado, criando uma relação de confiança e colaboração entre a comunidade religiosa e o SUS.

Um exemplo muito bonito desse tipo de sinergia foi visto recentemente na região Nordeste da Nigéria, durante a pandemia de Covid-19. Esta área sofria com altos índices de hesitação vacinal. Nura Ganduje, especialista em saúde pública do Conselho de Atenção Básica do país, fez uma parceria com os líderes religiosos no Estado de Kano, para desmentir mitos e promover a vacinação. 

Ganduje conta que seu time chegou a visitar mesquitas durante o período de rezas, levando um estoque de vacinas, para após a reza, com a ajuda do líder religioso, vacinar a congregação ali mesmo. Além dos líderes religiosos, o oficial de saúde conta que o governador fez questão de se vacinar publicamente, juntamente com sua família, e demais membros dos gabinetes. Esta iniciativa conseguiu garantir 100% de cobertura vacinal para Covid-19 em Kano, em janeiro de 2023.

Infelizmente, o próprio Ministério da Saúde (MS) impede esta interpretação neutra e derruba a esperança de uma integração positiva entre religião e ciência, ao declarar para veículos de imprensa que, se a diretriz 46 for aprovada, os conhecimentos de matriz africana poderão integrar as Práticas Integrativas e Complementares (PICs) do SUS. Não seria uma parceria institucional, portanto, e sim uma incorporação de práticas de fundo espiritual e religioso ao sistema público de saúde, ao lado de PICs como homeopatia, florais, reiki, ozonioterapia e constelação familiar.

Recentemente, o Instituto Questão de Ciência enviou um ofício ao Ministério da Saúde denunciando a ilegalidade da presença de PICs no SUS. A Lei nº 12.401, de 2011, determina que a incorporação, exclusão ou alteração de medicamentos, procedimentos e produtos ao SUS deve ser analisada previamente pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec, para encurtar.

As PICs, incluindo a ozonioterapia, nunca passaram pela análise da Conitec, e portanto existem num vácuo regulatório. Se o Ministério da Saúde reconhecer, como deveria, que as PICs estão ilegais, a diretriz de incorporar conhecimentos tradicionais de matriz africana — ou de qualquer outra origem — no SUS também deverá ser submetida ao crivo da Conitec para avaliação de eficácia e custo-benefício.

É possível imaginar dois desfechos: um cenário onde um ministério comprometido com as evidências científicas submete as PICs para avaliação científica, e cria um programa para incluir líderes religiosos e locais de culto como parceiros para facilitar o acesso da população a uma saúde pública baseada em medicina de verdade; outro, o cenário, populista, onde um ministério feito mais de slogans fáceis do que de substância, preocupado em agradar lobistas e nichos eleitorais, mantém as PICs, ignora a Conitec e abre as portas para incluir não só ritos de matriz africana, mas de todos os tipos e origens, como “tecnologias” de saúde. Quem acha absurdo a ozonioterapia no SUS é porque ainda não viu o exorcismo.


Fonte: O GLOBO