Representantes de órgãos públicos se esquivam de culpa, transferindo-a para colegas em diferentes esferas de poder

Passados sete meses dos atos de 8 de janeiro, a indicação de responsabilidades pela invasão e depredação das sedes dos Três Poderes virou um jogo de empurra entre as autoridades. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal (MPF) instauraram inquéritos e duas CPIs foram criadas — uma na Câmara Legislativa do Distrito Federal e outra no Congresso Nacional — para apurar as omissões. Mas, a cada novo depoimento ou ofício, os representantes dos órgãos públicos se esquivam da culpa, transferindo-a para os seus colegas no âmbito federal e distrital.

Em um ofício sigiloso enviado à CPMI, o Ministério da Defesa criticou os alertas emitidos pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sobre a movimentação de manifestantes em direção a Brasília antes de 8 de janeiro:

“Ressalta-se que estas mensagens não cumprem todos os requisitos de segurança e circularam por meio não oficial, além de posteriormente não terem sido formalizadas como prescrevem as normas e procedimentos gerais para intercâmbio de dados e de conhecimentos entre os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência”, diz o documento obtido pelo GLOBO.

O texto leva a assinatura do chefe da assessoria de inteligência da pasta, brigadeiro do ar Rodrigo Gibin Duarte, e reproduz a opinião das Forças Armadas sobre os alertas.

Em depoimento à CPMI, na última semana, o ex-diretor adjunto da Abin Saulo Moura Cunha refutou as queixas feitas sobre o canal de mensagens.

— Obviamente não é a ferramenta ideal, mas era o que tínhamos. Como eu brinco, em uma situação que evolui rapidamente, um sinal de fumaça é um sinal de inteligência. — disse ele, destacando que a mesma ferramenta foi usada na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Entre as autoridades que receberam os 33 alertas da Abin, estavam membros do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); dos ministérios da Justiça e Defesa; do Exército e da Marinha; da antiga pasta da Infraestrutura, da Secretaria de Segurança do Distrito Federal (SSP-DF); e da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), incluindo o ex-ministro do GSI general Gonçalves Dias.

No mesmo dia em que Cunha foi ouvido, o ex-ministro do GSI Gonçalves Dias falou em depoimento à CPI do MST. Lá, ele reiterou o discurso de que não recebeu nenhum relatório da Abin pela via oficial — o Correio Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência), que estava inativo à época. Antes, ele havia dito à PF que o 8 de janeiro aconteceu por causa de um "apagão geral do sistema" de inteligência.

Os alertas não levaram a Abin a produzir um relatório de inteligência mais consistente e não geraram nenhuma reação dentro dos órgãos. Além disso, os contatos dos grupos de WhatsApp estavam defasados e haviam sido nomeados pelo governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro, conforme mostrou O GLOBO.

Em um inquérito policial militar (IPM) que investiga a atuação da tropa no Planalto em 8 de janeiro, as autoridades militares ainda apontaram "indícios de responsabilidade" da Secretaria de Segurança e Coordenação Presidencial, que fica no guarda-chuva do GSI. Segundo as conclusões do IPM, cabia a essa secretaria "o planejamento, acionamento e emprego" da tropa. As informações do IPM foram divulgadas pelo jornal "Folha de S. Paulo" e confirmadas pelo GLOBO.

O desentendimento entre as autoridades sobre o 8 de janeiro ficou ainda mais evidente durante os depoimentos dos militares no IPM sobre a invasão ao Palácio do Planalto.

Ex-comandante do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), tenente-coronel Fernandes da Hora relatou que, em meio à invasão à sede do Executivo, um policial militar chegou até a apontar uma arma para ele.

"Em um acesso da rampa, vi alguns cases e cadeiras, e os policiais chegaram derrubando esse material que veio em minha direção e eu empurrei de volta. Nesse momento, os PMs começaram a gritar que eu estava maluco, que eu estava doido. Um dos militares da PM-DF estava portando uma arma e apontando em minha direção e eu gritei para que ele tivesse calma", disse o coronel em transcrição da oitiva obtida pelo GLOBO.

O inquérito militar concluiu que houve "descoordenação por parte do GSI" e "desencontro de informações relativas às ordens do GSI", o que provocou o conflito entre o pelotão do Exército e a Tropa de Choque da PM-DF. O primeiro grupo estava tentando evacuar o Planalto, enquanto o segundo queria prender os manifestantes ali mesmo.

Apesar dessa discordância entre GSI e as Forças Armadas, as duas instituições concordam em um ponto: a responsabilidade pela segurança da Praça dos Poderes cabia à Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF), que na época era comandada pelo ex-ministro da Justiça Anderson Torres. O Ministério da Justiça e a Polícia Federal corroboram essa visão.

Segundo os órgãos, houve falhas no planejamento da Polícia Militar do Distrito Federal (DF) e na execução do plano de conter o acesso dos manifestantes à Esplanada dos Ministérios. Até o comando da PM-DF assentiu que o contingente mobilizado era insuficiente, mas justificou que não foi avisada sobre o potencial de escalada de violência dos manifestantes.

Torres é hoje um dos principais suspeitos da PF por omissão nos atos golpistas que culminaram com a depredação dos prédios públicos. Na época dos ataques, ele estava em viagem aos Estados Unidos e tiraria férias oficialmente no dia 9. Em depoimento à PF, o ex-ministro da Justiça disse que "jamais daria condições" de as invasões acontecerem e que "jamais questionou o resultado das eleições".

Em entrevista ao GLOBO, o ministro da Justiça, Flávio Dino, foi enfático em dizer que o governo federal não tem prerrogativa para fazer o "policiamento ostensivo" e que vão "aparecer os elos perdidos" que "engendraram" a "ausência da polícia".

Representantes da PF, SSP e PM-DF, por sua vez, responsabilizam as Forças Armadas por não terem desmobilizado antes de 8 de janeiro o acampamento montado em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília. O então interventor do DF, Ricardo Cappelli, classificou o local como "minicidade golpista" de onde foi arquitetado os ataques às instituições.

Já o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos, afirmou que "houve uma negligência de várias entidades e órgãos públicos".

— Era um acampamento de criminosos, que reunia pessoas que estavam tramando um golpe de Estado. O que houve foi uma negligência de várias entidades, de vários órgãos públicos. (...) Verbalizei e inclusive formalizei isso num ofício, dizendo que aquelas pessoas precisavam ser contidas no acampamento, caso contrário elas iriam invadir o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto. Não sou vidente, só estava vendo as coisas — disse ele em um evento na última segunda-feira.

Alvos de investigações no Supremo Tribunal Federal (STF) por omissão, os ex-comandantes da PM Fábio Augusto e Jorge Naime ainda acusaram o Comando do Exército de terem impedido operações policiais para desfazer o acampamento no fim de 2022 - antes da posse do presidente Lula. À PF, o então chefe do Comando Militar do Planalto, general Dutra, afirmou que as ações da SSP tratavam apenas da retirada do comércio ambulante no local. Ele também explicou que não poderia agir sem uma decisão judicial ou intervenção do Ministério Público.


Fonte: O GLOBO