Novo estudo questiona argumentos da agência de que a nova regulação irá representar a abertura de 97,5% do mercado

A proposta da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) do novo marco regulatório para o Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros (TRIP) — em tese para estabelecer regras para a abertura do mercado — vai criar na prática uma proteção de mercado para 87% das linhas existentes no país.

A proposta foi levada à consulta pública na semana passada, em um processo de tentativa de abertura do mercado que se arrasta há quase 10 anos e que enfrenta a resistência de empresas tradicionais do setor.

Ao apresentar o documento para a discussão na consulta pública, a ANTT minimizou as críticas em relação à falta de abertura afirmando que a proposta trará “abertura ilimitada” para 97,5% dos mercados autorizados no país. Os 2,5% restantes, que ficarão protegidos da concorrência, representam 980 mercados autorizados, que a agência classifica como os "principais" do país.

A divisão numérica entre o que a agência classifica como os mercados que serão abertos e que ficarão protegidos esconde a verdadeira dimensão do volume de passageiros que permanecerá servido por empresas protegidas de qualquer concorrência. 

Para isso, segundo o especialista em regulação Felipe Freire da Costa, regulador federal concursado da própria ANTT e mestre em Engenharia de Transportes na COPPE/UFRJ, é preciso avaliar as linhas operadas pelas empresas e não os mercados, como faz a ANTT.

– A afirmação sobre a abertura de mercados irrestrita desconsidera a participação desses 2,5% no total de linhas operadas no setor — diz Felipe, que analisou a composição das mais de 4.200 linhas de ônibus interestaduais operadas no país. 

— Linha é aquilo que as empresas operam, tem ponto de origem e destino e normalmente tem pontos de embarque e desembarque no meio do trajeto. Mercado são as possibilidades de venda de bilhetes de passagem dentro de uma linha. E mais de 87% das linhas do setor possuem pelo menos um mercado principal em seus itinerários — completa. Logo, ao proteger o mercado principal, a agência está protegendo as linhas desse mercado.

— Mesmo que a empresa obtenha a licença para um desses mercados, não necessariamente ela vai obter para os outros. E isso cria uma barreira, principalmente para novas empresas — afirma Felipe.

Um outro levantamento feito pela Abrafrec, associação de fretadores colaborativos, mostra que nestes 980 mercados que ficarão protegidos quase não há concorrência: 78% são operados por apenas uma ou duas empresas.

Apesar de não atuar na regulação do TRIPs, Felipe contribuiu para a audiência pública com questionamentos à agência. Em sua página no Linkedin, ele vem publicando estudos técnicos bastante fundamentados questionando os parâmetros utilizados pela agência para avaliar o nível de eficiência das linhas — e com isso definir se elas podem ou não ser abertas à concorrência.

A complexidade do modelo de abertura proposto pela agência tem sido alvo de críticas dos novos entrantes do setor. Quando o modelo de abertura começou a ser discutido, com a substituição de um regime de permissão por autorização, e o fim do controle de preço de passagens, a expectativa era de seguir o modelo de abertura do setor aéreo. 

Havendo capacidade de infraestrutura — o que é crítico para o setor aéreo, mas não para o rodoviário — basta demonstrar capacidade operacional para que uma empresa obtenha autorização para competir no setor.

No entanto, a ANTT inovou ao adicionar à análise de capacidade operacional um critério de análise de eficiência de mercados e de viabilidade econômica da operação. Isso vem sendo questionado por economistas e especialistas em regulação — além das empresas novatas, que veem a medida como uma forma de proteger o mercado das incumbentes.

Em seus artigos no Linkedin e em conversa com a coluna, Felipe destrinchou os parâmetros usados pela ANTT para definir o grau de concorrência desejável para cada mercado e identificou que eles se baseiam em três normas antigas, que já foram revogadas pela ANTT, e que eram usadas para calcular os custos do setor e estabelecer os preços das passagens quando estes eram controlados. Para Felipe, basear uma política pública em uma norma que não existe mais abre brecha para contestação judicial.

Uma das normas estabelecia critérios para montar uma planilha de custos do setor. Com a revogação da norma em 2006, a planilha deixou de ser atualizada. Para calcular os custos das empresas hoje, utilizou-se os dados 2006, corrigidos pelo preço do diesel e da inflação. No caso da avaliação de demanda, como as empresas não são obrigadas a reportar o índice de aproveitamento dos ônibus, a ANTT só tem informação de demanda de 40% dos mercados.

— Como criar uma regulação que se baseia em custos do setor e na demanda se você não tem informação? — questiona.

A resistência à abertura do setor por parte das empresas incumbentes já levou à troca de alguns diretores e técnicos da agência e já resultou inclusive em uma investigação do Ministério Público. Só de 2018 para cá, foram realizadas duas tomadas de subsídios, cinco reuniões participativas e quatro audiências públicas para discutir o novo marco.


Fonte: O GLOBO