É possível encontrar formas mais éticas de conseguir recursos para eventos.

É incompreensível e, para mim, inaceitável, que sociedades de pediatria sigam insistindo em permitir que a indústria alimentícia, um setor produtivo que se ocupa, na sua imensa maioria, em viciar o paladar infantil e provocar o adoecimento de crianças (e adultos), seja patrocinadora de eventos para pediatras. A última notícia é a Nestlé patrocinando uma live para pediatras sobre prevenção da obesidade. É espantoso. O conflitos de interesse é tão evidente quanto grave.

Quando a Nestlé e outras empresas patrocinam eventos de Pediatria, estão conquistando a simpatia desse profissional, que tem uma tremenda autoridade junto às famílias. Isso é ciência básica de marketing, e funciona bem. Investimentos como esse geram recomendações ou até prescrições de papinhas com Neston ou Mucilon, farinhas refinadas açucaradas que são veneno para bebês. 

Multiplica receitas médicas de compostos lácteos açucarados e até “biscoitos saudáveis” para bebês, que preparam o terreno para a chegada da montanha de veneno que vem em seguida, na forma de iogurtes adoçados, achocolatados com 60 ou 70% de açúcar, biscoitos recheados, salgadinhos e refrigerantes. 

Sem falar no dano terrível que faz à amamentação (tema de colunas anteriores), facilitando a prescrição de fórmulas “se você estiver cansada”, “se você tiver pouco leite”, “se ela não estiver ganhando peso” — em vez de orientar ou encaminhar a um banco de leite ou consultora de amamentação (veja detalhes na série de colunas sobre amamentação, aqui publicadas).

A linha de produtos dessa empresa mostra uma dedicação ferrenha a PRODUZIR obesidade infantil (e de adulto também), e não prevenir, inundando a vida de nossas crianças com quantidade industriais de açúcar. Além de escravizar seu paladar de modo que ela se desinteresse de alimentos naturais e fique cada vez mais dependente de ultraprocessados.

O slogan principal da companhia é “Nestlé Faz Bem”. Está nos stands de todos os congressos de pediatria, em enormes letreiros. Mas há pouco vimos a notícia mostrando que, em documentos internos, a própria empresa admite que mais de 70% dos produtos alimentícios e 96% das bebidas (a exceção é do café puro) não são saudáveis.

Apesar disso, a a empresa se permite patrocinar um evento de PREVENÇÃO DA OBESIDADE. A razão é simples: dessa forma ela vai “limpando” sua imagem junto aos médicos e à sociedade. A gente esquece os documentos vazados, e com a ajuda das sociedades pediátricas (no caso a de São Paulo), simpatiza com a gigante suíça da alimentação (receitas de mais de US$ 100 bilhões anuais) e se rende aos seus venenos, oferecendo-os para nossas crianças, e aumentando seus lucros indecentes.

Sei que eventos precisam de patrocínio. Mas a verdade precisa ser dita: essa incoerência precisa ter fim. É possível encontrar formas mais éticas de conseguir recursos para eventos.


Fonte: O GLOBO