Autoridades aprovaram legislação para conter o aumento de narrativas enganosas e com discurso de ódio no mundo virtual, que pode ter impacto financeiro em empresas

Uma página de Facebook na Eslováquia, chamada Som z dediny, que significa “Sou da aldeia”, alardeou no mês passado uma afirmação russa já desmentida de que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, tinha comprado secretamente uma casa de férias no Egito, em nome da sua sogra.

Uma postagem no Telegram – posteriormente reciclada no Instagram e em outros sites – sugeriu que um candidato ao parlamento nas próximas eleições do país havia morrido devido à vacina contra a Covid-19, embora ele estivesse vivo. Um líder de extrema-direita publicou no Facebook uma fotografia de refugiados na Eslováquia adulterada para incluir um homem africano brandindo um facão.

À medida que a Eslováquia se aproxima das eleições do próximo sábado, o país tem sido inundado com desinformação e outros conteúdos nocivos em redes sociais. O que é diferente agora é uma nova lei da União Europeia que poderá forçar as plataformas mundiais de redes sociais a fazerem mais para combatê-la – ou então enfrentarão multas de até 6% das receitas de uma empresa.

A Lei dos Serviços Digitais pretende forçar os gigantes das redes sociais a adotarem novas políticas e práticas para responder às acusações que hospedam rotineiramente — e, através dos seus algoritmos, popularizam — conteúdos corrosivos. Se a medida for bem-sucedida, como esperam autoridades e especialistas, os seus efeitos poderão estender-se muito para além da Europa, alterando as políticas das empresas nos Estados Unidos e em outros países.

A lei, após anos de burocracia meticulosa na elaboração, reflete um alarme crescente nas capitais europeias de que o fluxo desenfreado de desinformação on-line - grande parte dela alimentado pela Rússia e outros adversários estrangeiros - ameaça erodir a governança democrática no centro da União Europeia.

Redes sociais como o X, antigo Twitter, comprado e rebatizado por Elon Musk, são afetadas pela nova lei europeia — Foto: Liesa Johannssen-Koppitz/Bloomberg

O esforço da Europa contrasta com a luta contra a desinformação nos Estados Unidos, que ficou atolado em debates políticos e jurídicos sobre que medidas, se houver, o governo pode tomar para definir o que as plataformas permitem nos seus sites.

Um tribunal federal de apelações decidiu este mês que o governo Biden muito provavelmente violou a garantia de liberdade de expressão da Primeira Emenda ao instar as empresas de mídia social a removerem conteúdo.

A nova lei europeia já preparou o terreno para um confronto com Elon Musk, dono da X (antigo Twitter). Musk retirou-se este ano de um código de conduta voluntário, mas deve cumprir a nova lei – pelo menos no mercado da União Europeia de quase 450 milhões de pessoas.

"Você pode fugir, mas não pode se esconder", alertou Thierry Breton, o comissário europeu que supervisiona o mercado interno do bloco, na rede social logo após a retirada de Musk.

As eleições na Eslováquia, as primeiras na Europa desde que a lei entrou em vigor no mês passado, serão um primeiro teste de impacto. Outras eleições devem aprofundar a análise em breve, em Luxemburgo e na Polônia, enquanto os 27 Estados-membros do bloco votarão, no próximo ano, nos representantes do Parlamento Europeu, diante do que as autoridades descreveram como operações de influência sustentadas por parte da Rússia e de outros países rivais.

Regulamento geral

Embora as intenções da lei sejam abrangentes, fazer cumprir o comportamento de algumas das empresas mais ricas e poderosas do mundo continua a ser um desafio assustador.

Essa tarefa é ainda mais difícil para a fiscalização da desinformação nas redes sociais — onde qualquer pessoa pode publicar as suas opiniões, e as percepções da verdade são muitas vezes distorcidas pela política. Os reguladores teriam de provar que uma plataforma tem problemas sistémicos que causaram danos, uma área jurídica não testada que poderia levar a anos de litígio.

A aplicação da lei histórica de privacidade de dados da União Europeia, conhecida como Regulamento Geral de Proteção de Dados e adotada em 2018, tem sido lenta e complicada, embora os reguladores tenham imposto em maio a pena mais severa até agora, multando a Meta em 1,2 bilhões de euros (R$ 6,3 bilhões). A Meta recorreu.

Dominika Hajdu, diretora do Centro para a Democracia e Resiliência da Globsec, uma organização de pesquisa na capital da Eslováquia, disse que apenas a perspectiva de multas forçaria as plataformas a fazer mais em um mercado unificado mas diversificado, com alcance a muitas nações e línguas minoritárias.

— Na verdade, é necessário dedicar uma grande soma de recursos, ampliando as equipes que seriam responsáveis por um determinado país — disse ela. — Requer energia e pessoal que as plataformas de mídia social terão de fornecer para todos os países. E isso é algo que eles relutam em fazer, a menos que haja um custo financeiro potencial.

Meta, de Mark Zuckerberg, também está sujeita às fiscalizações — Foto: Bloomberg

A lei, a partir de agora, aplica-se a 19 sites com mais de 45 milhões de usuários, incluindo as principais empresas de redes sociais, sites de compras como Apple e Amazon, e os mecanismos de busca como Google e Bing.

A lei define categorias amplas de conteúdo ilegal ou prejudicial, e não temas ou tópicos específicos. Obriga as empresas a, entre outras coisas, fornecer maiores proteções aos usuários, dando-lhes mais informações sobre algoritmos que recomendam conteúdos e permitindo-lhes optar pela exclusão, e acabar com a publicidade dirigida a crianças.

Também exige que apresentem auditorias independentes e tomem decisões públicas sobre a remoção de conteúdos e outros dados – medidas que, segundo os especialistas, ajudariam a combater o problema.

Breton, numa resposta por escrito às perguntas, disse que discutiu a nova lei com executivos da Meta, TikTok, Alphabet e X, e mencionou especificamente os riscos representados pela eleição da Eslováquia.

“Fui muito claro com todos eles sobre o escrutínio rigoroso a que estarão sujeitos”, disse Breton.

No que autoridades e especialistas descreveram como um sinal de alerta para as plataformas, a Comissão Europeia também divulgou um relatório contundente que estudou a propagação da desinformação russa nos principais sites de redes sociais no ano seguinte à invasão da Ucrânia pela Rússia.

Bandeira da União Europeia — Foto: Bloomberg

— Isso mostra claramente que os esforços das empresas de tecnologia foram insuficientes — disse Felix Kartte, diretor da Reset, o grupo de pesquisa sem fins lucrativos que preparou o relatório.

O engajamento de conteúdos alinhados ao Kremlin desde o início da guerra aumentou marginalmente no Facebook e no Instagram, ambos propriedade da Meta, mas aumentou quase 90% no YouTube e mais do que duplicou no TikTok.

“As plataformas on-line reforçaram a capacidade do Kremlin de travar uma guerra de informação e, assim, causaram novos riscos para a segurança pública, os direitos fundamentais e o discurso cívico na União Europeia”, afirma o relatório.

Meta e TikTok não quiseram comentar a promulgação da nova lei. X não respondeu a um pedido. Ivy Choi, porta-voz do YouTube, disse que a empresa estava a trabalhar em estreita colaboração com os europeus e que as conclusões do relatório eram inconclusivas. Em junho, o YouTube removeu 14 canais que faziam parte de “operações coordenadas de influência ligadas à Eslováquia”.

Nick Clegg, presidente de assuntos globais da Meta, disse em um blog, no mês passado, que a empresa acolheu a “maior clareza sobre as funções e responsabilidades das plataformas on-line”, mas também sugeriu o que alguns consideraram os limites da nova lei.

“É certo tentar responsabilizar grandes plataformas como a nossa por meio de coisas como relatórios e auditoria, em vez de tentar microgerenciar partes individuais de conteúdo”, escreveu ele.

Desinformação

A Eslováquia, com menos de seis milhões de habitantes, tornou-se um foco não apenas devido à sua eleição no sábado. O país tornou-se um terreno fértil para a influência russa devido aos laços históricos. Agora enfrenta o que a sua presidente, Zuzana Caputova, descreveu como uma campanha concertada de desinformação.

Nas semanas desde que a nova lei entrou em vigor, os investigadores documentaram casos de desinformação, discurso de ódio ou incitamento à violência. Muitos derivam de contas pró-Kremlin, mas muitos são de origem local, de acordo com a Reset.

Eles incluíram uma ameaça vulgar no Instagram dirigida ao ex-ministro da Defesa, Jaroslav Nad. A falsa acusação no Facebook sobre a compra de propriedades de luxo pelo presidente ucraniano no Egito incluía um comentário mordaz típico da hostilidade na Eslováquia que a guerra despertou entre alguns.

“Ele só precisa de uma bala na cabeça e a guerra terminará”, dizia. Postagens em eslovaco que violam as políticas da empresa, disseram os pesquisadores da Reset, foram vistas pelo menos 530 mil vezes em duas semanas após a entrada em vigor da lei.

Desinformação pelas redes preocupa grupos políticos nas eleições da Eslováquia — Foto: Vladimir Simicek/AFP

Embora a Eslováquia tenha aderido à Otan em 2004 e tenha sido um firme apoiador e fornecedor de armas à Ucrânia desde a invasão russa, o atual favorito é o SMER, um partido liderado por Robert Fico, um antigo primeiro-ministro que agora critica a aliança e as medidas punitivas contra Rússia.

O Facebook encerrou a conta de um dos candidatos do SMER, Lubos Blaha, em 2022, por espalhar desinformação sobre a Covid-19. Conhecido por comentários inflamados sobre a Europa, a Otan e questões LGBTQIA+, Blaha permanece ativo nas postagens do Telegram, que a SMER repassa em sua página do Facebook, contornando a proibição.

Jan Zilinsky, um cientista social da Eslováquia que estuda o uso das redes sociais na Universidade Técnica de Munique, na Alemanha, disse que a lei era um passo na direção certa.

— A moderação de conteúdo é um problema difícil e as plataformas definitivamente têm responsabilidades — disse ele. — Mas o mesmo acontece com as elites políticas e os candidatos.


Fonte: O GLOBO