Regras internacionais incluem desde garantias de alguns direitos, mas sem considerar esses trabalhadores como empregados, até nenhuma seguridade social

O presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente americano Joe Biden se encontram nesta quarta-feira para discutir temas relacionados ao universo do trabalho, incluindo garantias aos trabalhadores de aplicativos. Durante o encontro, que acontece em Nova York, os dois presidentes lançam o programa ''Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras'', iniciativa inédita entre os dois países que tem como objetivo promover o trabalho digno.

- É a primeira vez em mais de 500 anos da história do Brasil em que você senta com o presidente da República americano, em igualdade de condições, para discutir um problema crônico, que é a questão da precarização do mundo do trabalho - explicou o Lula.

Segundo o presidente brasileiro, a iniciativa vai apontar para a sociedade e para a juventude a oportunidade de alcançar um trabalho que permita viver dignamente.

Brasil e EUA vão trabalhar em estreita colaboração com parceiros sindicais do Brasil e dos EUA, e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). E pretendem envolver outros países e parceiros globais na inciativa, e assim fomentar um desenvolvimento inclusivo, sustentável e amplamente compartilhado com todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Dilema recorrente em diferentes países

O trabalho por aplicativos é um dilema recorrente em diferentes países do mundo. No Brasil, o governo criou um grupo de trabalho para regular o trabalho de entregadores, motoristas e outros profissionais que atuam com a intermediação de plataformas digitais sem carteira assinada.

Segundo especialistas, o precedente internacional sobre como analisar esse novo formato de trabalho comporta desde modelos com garantias de alguns direitos, mas sem considerar esses trabalhadores como empregados das plataformas, até sistemas sem qualquer mecanismo de seguridade social.

Em Portugal, 'presunção relativa'

Paulo Renato Fernandes da Silva, doutor em direito e professor de Relações de Trabalho da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que Portugal estabeleceu a “presunção relativa” de existência de vínculo de emprego de trabalhadores plataformizados.

Isso quer dizer que, salvo nos casos em que a plataforma consiga comprovar que o trabalhador tinha autonomia, essas pessoas são consideradas empregadas.

— Mas devem ser observadas algumas condições, como se, por exemplo, a plataforma estabelece horários de trabalho ou mecanismos de punição. Com a mudança, os trabalhadores passaram a ter direito a férias e 13º salário, por exemplo — diz Silva.

Estatuto garante salário mínimo na Espanha

A Espanha, por outro lado, tem o estatuto do trabalhador autônomo e independente, mecanismo que cria um modelo de trabalho entre o empregado formal e o autônomo.

O documento traz regras mais gerais e não estabelece, por exemplo, a duração da jornada de trabalho, mas determina que todo trabalhador deve ter um intervalo de 12 horas entre duas jornadas, explica Silva.

Segundo Mozar Carvalho, fundador do escritório Machado de Carvalho Advocacia, o governo espanhol entendeu que as plataformas, através de seus algoritmos e sistemas de avaliação, exercem um controle significativo sobre como, quando e onde os entregadores realizam seu trabalho.

As empresas agora também têm a obrigação de garantir direitos trabalhistas básicos, como salário mínimo, férias pagas, seguros e contribuições para a seguridade social (o INSS de lá).

Plataformas geram protestos entre franceses

Na França, a presença dessas plataformas não apenas transformou a economia local, mas também desencadeou confrontos e protestos, especialmente com setores tradicionais, como taxistas.

Em 2020, a Justiça do país emitiu uma decisão em uma ação individual reconhecendo um motorista da Uber como empregado, baseando-se no argumento de que o motorista não definia suas tarifas e trabalhava sem autonomia na prestação do serviço.

— Apesar da decisão, a questão está longe de ser resolvida — contrapõe Carvalho. — Cada caso é tratado com sua especificidade. Isso significa que, na França, enquanto alguns trabalhadores conseguem o reconhecimento como empregados, outros ainda podem ser tratados como autônomos.

Na Alemanha, conta o grau de autonomia

Na Alemanha, um país de sindicatos fortes, a abordagem para trabalhadores de aplicativos é moldada por um sistema jurídico que valoriza os direitos trabalhistas. Diversos casos foram levados aos tribunais e, em grande parte, a análise girou em torno do grau de autonomia que o trabalhador mantém em sua relação com a plataforma.

— Se a plataforma exerce controle significativo sobre o modo como o trabalho é realizado, como definir preços ou penalizar os trabalhadores por não aceitar corridas, isso pode ser interpretado como uma relação de subordinação. Nesse caso, o trabalhador pode ser visto menos como um autônomo e mais como um empregado tradicional — explica Carvalho.

Outro fator considerado nos tribunais é o tempo gasto no aplicativo. Se um motorista ou entregador estiver operando principalmente para uma única plataforma e dedicando muitas horas, isso pode inclinar a balança em favor do reconhecimento de uma relação empregatícia.

Neste caso, os trabalhadores têm direito a salário mínimo, proteção contra demissão injusta, licença remunerada, seguro saúde e contribuições previdenciárias.

Nos EUA, empregados querem se manter 'independentes'

Nos Estados Unidos, muitos estados classificam esses trabalhadores como “independent contractors” (ou autônomos). No entanto, a Califórnia aprovou a Assembly Bill 5 (AB5) em 2019, que impõe um teste rigoroso para determinar se alguém é apenas um autônomo.

Caso as empresas não passem no teste, os trabalhadores são classificados como empregados, com direito a salário mínimo, seguro-desemprego e benefícios de saúde.

— Mas empresas de aplicativos lançaram uma campanha massiva na mídia para aprovar a Proposição 22 e se isentar da AB5, mantendo os trabalhadores como independentes, mas oferecendo alguns benefícios, como salário mínimo, mas apenas durante o tempo “ativo” (ou seja, enquanto estivessem buscando ou fazendo entrega/transportando um passageiro), contribuição para um plano de saúde aos motoristas que trabalhassem um mínimo de horas e seguro em caso de acidentes de trabalho — diz Carvalho.

Em que pé está a questão no Brasil?

No Brasil, o processo de regulamentação ainda está indefinido. A rodada de reuniões do grupo de trabalho criado pelo governo federal para discutir regras do trabalho intermediado por plataformas terminou na semana passada, sem consenso entre as partes.

As negociações começaram em junho e abordaram desde ganhos mínimos e indenização pelo uso dos veículos até previdência, saúde e transparência algorítmica – para que o trabalhador saiba o que determina seus ganhos. O principal impasse ficou nos valores propostos para remuneração a entregadores e motoristas.

Representantes dos trabalhadores e das empresas tinham até o dia 12 para apresentar uma proposta, mas não houve acordo.

Presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Francisco da Silva afirma que a categoria foi informada que as entidades que representam os aplicativos teriam até esta terça-feira para fazer uma nova proposta, o que foi negado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

– Tivemos uma reunião na semana passada com o MTE, onde foi dito que tudo seria passado para o presidente. Depois nos informaram que as empresas tinham que dar uma nova proposta. Estamos aguardando.

Já o presidente da Federação Nacional dos Sindicatos de Motoristas por Aplicativo (Fenasmapp), Leandro Cruz, afirma que os trabalhadores esperam por uma nova reunião do GT:

– Não tivemos entendimento com as plataformas. A nossa proposta não mudou em nada. O que a gente aguarda é algo melhor do que o que foi apresentado, porque o que eles colocaram na mesa não satisfaz a categoria.

Segundo o MTE, o prazo para definição da proposta termina, na verdade, no dia 30. Até lá, as partes podem fazer novas proposições, estando ainda “em negociação”. Os próximos passos dependem de uma decisão do presidente Lula, que pode prorrogar os trabalhos do grupo ou determinar que o governo tome a frente na definição da regulamentação.

A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) — organização que reúne as empresas líderes de mercado, como 99, Amazon, iFood, Uber e Lalamove — informou em nota que “vem apresentando diversos documentos e propostas” desde o início das negociações e que as discussões continuam “para a análise detalhada das propostas e de seus impactos”.

Já o Movimento Inovação Digital (MID), que representa Loggi e Rappi, disse que apresentou uma proposta de valores mínimos para as atividades de entrega e transporte individual de pessoas, que não foi plenamente aceita e o “debate deve continuar nas próximas semanas”.


Fonte: O GLOBO