Empresas dos EUA e Europa oferecem o exame como uma forma de revolucionar os cuidados de saúde preventivos; especialistas alertam que esta não é a abordagem correta
O novo símbolo de status entre famosos e endinheirados é realizar uma ressonância de corpo inteiro como check-up. Nos últimos meses, imagens de celebridades e influenciadores sentados em frente a uma máquina de ressonância magnética, vestindo uma espécie de uniforme, começaram a aparecer nas redes sociais com frequência.
A mais emblemática talvez tenha sido a publicação de Kim Kardashian. Na foto, ela aparece de chinelos, na pose descrita acima, para seus 364 milhões de seguidores, com a legenda “a ressonância magnética da Prenuvo tem a habilidade de detectar câncer e doenças como aneurismas em estágios iniciais, antes que os sintomas apareçam. (...) Realmente isso salvou a vida de alguns dos meus amigos e eu apenas queria compartilhar”.
A Prenuvo é uma das empresas que oferecem o exame que demora cerca de uma hora e chega a custar US$ 2.499 (o equivalente a R$ 12.300), como check-up em busca de sinais precoces de doenças como câncer, aneurisma, doenças hepáticas, degeneração espinhal, condições musculoesqueléticas e até esclerose múltipla. Outras empresas que oferecem esse mesmo serviço são Ezra, simonONE e Neko Health, com sede em Estocolmo.
Embora afirme que nenhuma das celebridades que divulgam o produto são pagas, a Prenuvo admite que oferece exames gratuitos para influenciadores e figuras proeminentes da indústria do bem-estar “em troca de uma avaliação honesta, se assim o desejarem". Durante a New York Fashion Week, no início de setembro, o serviço foi oferecido para algumas pessoas influentes no mundo da moda,incluindo editor de moda francês Olivier Zahm, o estilista Zac Posen, a modelo Lily Aldridge e a editora da Vogue Gabriella Karefa-Johnson. Todos postaram fotos sobre o exame.
Entretanto, diversos especialistas alertam contra a realização desse tipo de exame como check-up. Em abril, o Colégio Americano de Radiologia divulgou um comunicado dizendo que não havia “nenhuma evidência documentada de que o exame corporal total seja rentável ou eficaz no prolongamento da vida”, e expressando preocupação de que esses exames poderiam levar a “descobertas inespecíficas” que exigem acompanhamento caro e extenso.
Um estudo publicado em 2019 analisou 12 trabalhos realizados anteriormente com mais de 5 mil pessoas submetidas à ressonância magnética de corpo inteiro, sem apresentar quaisquer sintomas de doenças. Os resultados mostraram que o exame detectou uma anormalidade que poderia ser clinicamente relevante em cerca de 32% das pessoas. No entanto, não está claro se essas anormalidades teriam levado à doença ou à morte.
Além disso, entre os seis estudos que tinham dados completos, 6% das pessoas apresentaram falsos positivos. Apenas um estudo observou falsos negativos – o que significa que o exame perdeu alguma coisa – o que ocorreu em cerca de 2% dos participantes.
A ressonância magnética é um exame que se utiliza dos princípios da radiofrequência para enxergar os órgãos, com a grande vantagem de não emitir radiação. Como o poder de visualização é excelente, esse recurso é muito utilizado para averiguar cartilagens, músculos e órgãos, em especial coração, fígado e cérebro, em exames específicos. Já ressonância magnética de corpo inteiro, fará uma varredura do paciente, da cabeça aos pés.
Esse exame está disponível no Brasil. Sua realização só é feita mediante prescrição médica, a um custo de cerca de R$ 6 mil. Como ele não consta na lista da Agência Nacional de Saúde (ANS), não há cobertura pelos planos de saúde. Especialistas ouvidos pelo GLOBO explicam que esse exame é uma ferramenta importante, desde que usado corretamente.
— A ressonância magnética de corpo inteiro tem indicações bem precisas e fazer check-up não é uma delas. Primeiro, porque ela é um exame mais geral e não consegue ir a fundo no achado. Segundo porque pode acabar detectando muitas coisas que serão benignas. Mesmo assim, isso exigirá a realização de exames adicionais específicos que aumentam o gasto e a exposição do paciente, além da ansiedade gerada em todo esse processo — diz o médico radiologista Alipio Gomes Omond Filho, coordenador do Centro Avançado de Diagnóstico por Imagem Osteomuscular do Grupo Fleury.
radiologista Harley de Nicola, superintendente médico da Fundação Instituto de Pesquisa e Estudo de Diagnóstico por Imagem (FIDI) explica que a ressonância magnética de corpo inteiro pode ser especialmente útil para análise do sistema ósseo e músculo- esquelético, como para identificar metástase óssea em pessoas com câncer de pulmão.
— Uma das indicações mais precisas desse exame é para averiguar suspeitas de câncer ou metastáse em crianças, devido à ausência de radiação — explica Nicola.
Outras indicações incluem suspeita de doenças musculares, doenças sistêmicas em pediatria e síndromes genéticas que predispõem ao câncer, como Li-Fraumeni.
— Nestes casos, a realização do exame se justifica — avalia Omond Filho.
O risco de falsos positivos
Nossos corpos geralmente contêm anormalidades, como caroços, massas e cicatrizes em órgãos, que podem ser detectadas por ressonância magnética. Uma ressonância magnética por si só nem sempre é possível dizer se um achado é benigno ou preocupante e, muitas vezes, os pacientes têm que se submeter a testes adicionais.
Um representante da Prenuvo disse que 5% das pessoas que fazem um exame Prenuvo são alertadas sobre “descobertas que podem salvar vidas”. Lacy, o fundador da Prenuvo, disse que os riscos teóricos em torno dos falsos positivos não refletem a tecnologia da Prenuvo, que ele diz ser mais precisa do que as tomografias computadorizadas usadas na maioria dos exames de triagem.
Mas, de acordo com a médica Rebecca Smith-Bindman, diretora do Laboratório de Pesquisa de Resultados de Radiologia da Universidade da Califórnia em São Francisco, o problema não tem nada a ver com a tecnologia” e sim com a “variação profunda e normal em nossos corpos” e com a probabilidade de nódulos e anormalidades que uma máquina muito sensível encontrará.
Exames preventivos como esse provavelmente encontrarão cânceres precoces e para um pequeno número de pacientes, detectar e tratar um câncer precoce terá um benefício profundo, mas “o número de tumores benignos supera em muito o número de tumores agressivos”, disse ela.
Assim como nem todo aneurisma detectado irá representar um risco para a vida desse paciente. Mesmo assim, qualquer anormalidade detectada exigirá a realização de análises mais detalhadas, o que pode resultar em novos exames e intervenções invasivas. Testes adicionais podem trazer novas complicações e exposição potencialmente desnecessária à radiação, assim como representar um custo potencialmente desnecessário para o paciente ou para o sistema de saúde.
— Os exames de rastreamento do câncer seguem padrões de segurança do paciente e recomendações que levam em conta o sexo, a idade, algumas características de estilo de vida. Quando não há indicação expressa para estes exames, pode haver impacto negativo para o paciente – com a realização de procedimentos dispensáveis e até mais invasivos, além de gastos desnecessários para o sistema, com possível sobretratamento e sobrediagnóstico — pontua o oncologista clínico Henrique Helber, do Hospital Israelita Albert Einstein, HCor e integrante do comitê científico do Instituto Vencer o Câncer.
(Com The New York Times)
Fonte: O GLOBO
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