Antes, os exemplares mais antigos conhecidos desta atividade eram plataformas de 9 mil anos à beira de um lago britânico

Há quase meio milhão de anos, os humanos da África usavam madeiras em grandes estruturas, de acordo com um estudo publicado nesta quarta-feira que descreve troncos entalhados e cônicos enterrados sob a areia na Zâmbia. A descoberta retrocede drasticamente o registro histórico da marcenaria estrutural na Humanidade. Antes, os exemplos mais antigos conhecidos desta atividade eram plataformas de 9 mil anos à beira de um lago britânico.

Produtos de madeira antigos são extremamente raros porque o material orgânico normalmente se degrada ao longo de milhares de anos, disse Annemieke Milks, arqueóloga da Universidade de Reading que não esteve envolvida no novo estudo, publicado na revista Nature.

— Quase nunca se preserva — disse ela.

Não está claro o que os primeiros humanos construíram na África. Milks disse que a nova descoberta sugere que eles usavam madeira não apenas para lanças ou varas de escavação, mas também para criações muito mais ambiciosas, como plataformas ou passarelas.

— Acho que a maioria dos primeiros grupos humanos usava madeira de alguma forma — disse ela. — Nós simplesmente não víamos isso.

Os troncos foram descobertos por uma equipe internacional de cientistas em 2019, perto de uma enorme cachoeira na Zâmbia, conhecida como Cataratas de Kalambo. Lá, o Rio Kalambo desce 234 metros antes de desaguar no Lago Tanganyika.

Para os arqueólogos, o local tem uma história conturbada. Na década de 1950, um arqueólogo britânico, Desmond Clark, encontrou antigas ferramentas de pedra perto das cataratas, bem como pedaços de madeira que ele sugeriu terem sido escavados com paus e lanças. Outras peças pareciam ter sido queimadas; aquela teria sido uma das evidências mais antigas de pessoas fazendo fogueiras.

No início dos anos 2000, porém, grande parte do brilho da descoberta de Clark havia desaparecido. Por um lado, ele nunca conseguiu determinar com precisão a idade da madeira. O único método confiável disponível na época para determinar a idade era a datação por radiocarbono, que só pode ser usada em objetos com menos de 50 mil anos. As peças de madeira em Kalambo provaram ser mais antigas do que isso — mas quanto mais antigas?

Outros pesquisadores questionaram se as pessoas realmente criaram os objetos de madeira. Clark reconheceu que poderiam ter sido galhos que caíram no Kalambo e foram remodelados por grãos de areia carregados na água que flui em direção às cataratas.

Em 2006, Lawrence Barham, arqueólogo da Universidade de Liverpool, e seus colegas retornaram às Cataratas de Kalambo. Naquela altura, os investigadores tinham desenvolvido uma nova forma de determinar a idade dos sítios arqueológicos, aproveitando a forma como os grãos de quartzo podem funcionar como relógios geológicos. 

À medida que os átomos de urânio que ocorrem naturalmente se decompõem no solo, eles liberam energia que fica presa dentro do quartzo. Com o tempo, os grãos armazenam cada vez mais energia, que os cientistas podem medir mais tarde nos seus laboratórios. Quanto mais energia, mais velho é o espécime.

Na viagem às cataratas em 2006, os cientistas encontraram mais ferramentas de pedra. Geoff Duller, geofísico da Universidade de Aberystwyth, no País de Gales, coletou areia nas margens dos rios e passou os anos seguintes medindo a energia armazenada ali. Ele determinou que as camadas mais antigas de sedimentos que continham ferramentas de pedra tinham entre 300 mil e 500 mil anos de idade.

Isso significava que as ferramentas foram fabricadas muito antes da evolução dos humanos modernos. Os cientistas suspeitam que podem ter sido produzidas por uma espécie anterior presente na Zâmbia, conhecida como Homo heidelbergensis.

Os pesquisadores fizeram outra viagem às cataratas, em 2019, e Duller planejou usar uma técnica de datação ainda mais poderosa baseada em grãos de feldspato em vez de quartzo. Mas quando chegaram ao antigo local, descobriram que ele havia desaparecido. Nos 13 anos desde a última viagem, o rio mudou. Tudo o que restou foi um pântano cheio de juncos.

Felizmente, havia um plano B. Antes da expedição, Barham usou o Google Earth para localizar uma promissora faixa de praia ao longo do Rio Kalambo. Quando chegaram lá, Barham imediatamente viu um pedaço de madeira projetando-se da areia. Na água, ele encontrou uma ponta afiada que se encaixava perfeitamente em uma das pontas do bastão. Se ele tivesse vindo um ano depois, os fragmentos poderiam ter sido levados pela água.

— Foi apenas um momento de sorte — disse Barham.

Na mesma área, os pesquisadores encontraram ferramentas de pedra junto com madeira em forma de cunhas e V, sinais claros de trabalho manual.

Duller usou os grãos de feldspato para determinar a idade dos artefatos. Ele descobriu que os objetos vieram de três idades distintas: 487 mil anos atrás, 390 mil anos e 324 mil anos. É possível que as pessoas tenham vivido à beira do rio durante essa época ou retornado a ele ao longo de milhares de gerações.

No final de 2019, os investigadores fizeram a sua descoberta mais espetacular. Na camada mais antiga de areia, eles descobriram um tronco de mais de um metro e meio de uma pequena árvore africana conhecida como salgueiro de Zeyher. Perto da extremidade cônica da tora, os pesquisadores notaram um grande entalhe. Quando cavaram mais fundo, perceberam que a parte entalhada do tronco estava apoiada em um tronco de árvore ainda maior.

À medida que os pesquisadores expunham a madeira, eles tiravam fotografias de alta resolução. As fotos revelaram marcas de corte no tronco, sugerindo que as pessoas as trabalharam com machados e ferramentas de raspagem.

— Isso é deliberado — disse Barham. — Isso é intencional.

Milks disse que tirar fotos dos antigos objetos de madeira assim que foram descobertos foi crucial para entender como eles foram criados. A areia encharcada permitiu que a madeira sobrevivesse por centenas de milhares de anos quase inalterada. Mas quando a madeira antiga é novamente exposta ao ar, ela pode perder pistas essenciais em questão de minutos.

— Ela pode encolher, pode deformar, todo tipo de coisa pode acontecer — disse

Barham e seus colegas colaboraram com John Mukopa, um marceneiro tradicional da Zâmbia, para interpretar suas descobertas. Eles suspeitam que as pessoas cortavam árvores vivas com machados de pedra. Eles então trabalhavam a madeira para que as duas peças pudessem se encaixar em alguma estrutura maior.

— Coloque-se na mente de alguém que viveu lá há quase 480 mil anos e que tinha um cérebro grande — disse ele. — Não tenha medo de sugestões complexas.


Fonte: O GLOBO