Apesar de bem delimitada, o domínio das competências exigidas ainda é restrito; provas serão realizadas nos dias 5 e 12 de novembro
“Não entendeu o tema? Você culpa o Estado e a mídia. Por exemplo, pobreza. Você culpa o estado por não fazer nada. E a mídia também. Porque se a mídia não falar, você não vai refletir sobre o tema”. A dica é de uma tiktoker que, mesmo sem entender bem o tema da redação do Enem em 2021, afirma que tirou 960. “E os pontos que perdi foi de gramática”. É fácil, então, como sugere a tiktoker? Nem tanto, segundo o que apontam os dados da série histórica.
A forma da redação do Enem, este ano nos dias 5 e 12 de novembro, está na ponta da língua de professores especializados na preparação para o exame e de inscritos que passaram o ano estudando para a prova, uma das mais importantes no processo de ingresso na universidade. Mesmo assim, não é fácil chegar à nota perfeita: levantamento do GLOBO nos microdados do Inep mostra que, nos últimos cinco anos, o Enem corrigiu 15,6 milhões de redações e apenas 190 conseguiram a nota máxima. Isso significa que apenas uma a cada 82 mil conseguem o feito.
Uma estudante que conquistou a nota mil foi Maria Victória Parizani, ex-aluna de 21 anos do Colégio e Curso AZ. No ano passado, depois de bater na trave duas vezes, ela conseguiu a marca. Foram três edições de Enem seguidas e um ano inteiro fazendo entre uma e duas redações por semana.
— Não foi complicado de aprender (o que a prova exigia), mas na hora há pequenos detalhes que tem que se atentar — explica a agora aluna de Medicina da UFRJ.
O Enem deixa claro aos concorrentes o que os corretores de redação esperam deles. Todo ano é publicada uma cartilha detalhada — são 52 páginas — com as orientações. A base são as cinco competências: 1) domínio da escrita formal da Língua Portuguesa; 2) compreender o tema e não fugir da proposta da redação; 3) organização das ideias; 4) coesão e coerência; e 5) proposta de intervenção. O preparo para a redação é justamente entender cada um desses pontos e saber o que garante pontuações altas.
— Tem um modelinho a ser seguido. São quatro parágrafos, o primeiro é introdução, depois dois de desenvolvimento e a conclusão com a proposta de intervenção — explica a aluna nota mil.
Apesar de bem delimitada, o domínio das competências exigidas no Enem ainda é restrito. Há duas semanas, o GLOBO mostrou que a diferença de desempenho na redação entre alunos de escolas públicas e privadas é de 182 pontos, três vezes maior do que na prova objetiva, que, em 2022, chegou a 67 pontos, o menor patamar dos últimos oito anos.
— Nos últimos dez anos, mais de 10 milhões de alunos de escolas estaduais fizeram a prova. Desses, 2 milhões tiraram zero na competência cinco. Não foram capazes de dar uma resposta articulada para o tema em questão. Isso significa que a redação do Enem está longe de ser uma fórmula que a maior parte dos brasileiro domina — avalia Luis Junqueira, professor e cofundador da Letrus, plataforma de ensino de redação.
‘Miojo’ da mudança
Nos cursinhos privados, se ensina intensamente cada detalhe das competências, como a obrigatoriedade de apresentar repertório cultural. Ou seja, ligar o tema proposto com alguma referência, podendo ser as ideias de um intelectual, um livro, filme ou até séries de TV.
Isso faz com que estudantes busquem conceitos que eles possam adaptar para qualquer situação. Num grupo sobre o Enem no Facebook, um jovem lançou sua dúvida: “Gente, vou usar a Constituição como repertório, e citação vou usar John Locke. Na conclusão, precisa ser feita a retomada. Qual vocês acham melhor: ‘Assim, os direitos previstos na Constituição serão realmente efetivados na atualidade’ ou ou ‘Assim, busca-se uma sociedade onde o Estado desempenhe corretamente o bem-estar social, como afirma John Locke?’”, escreveu, buscando uma conclusão possível para qualquer texto.
— Para o tamanho da avaliação que é o Enem e os objetivos dele, a redação que temos hoje, com a análise dessas cinco competências, está boa — avalia Junqueira.
Mas nem sempre foi assim. Esse formato de redação tão bem estabelecido é uma construção dos últimos dez anos. Em 2012, o Enem registrou 2.083 notas mil. No entanto, uma reportagem do GLOBO do ano seguinte mostrou que, apesar de seguirem a proposta do tema “A imigração para o Brasil no século XXI”, os textos não respeitavam a primeira das cinco competências avaliadas pelos corretores: demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita. “Rasoavel”, “enchergar”, “trousse” foram alguns dos erros localizados pelo jornal.
Naquele ano, também ficou famosa a redação de um inscrito que interrompeu seu raciocínio e escreveu: “Para não ficar cansativo vou ensinar agora a fazer um belo miojo”, seguindo com a receita do macarrão. Mesmo com a evidente fuga do tema, ele tirou 560.
A revelação dos problemas gerou uma crise no Ministério da Educação, comandado à época pelo atual presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, que anunciou uma série de reformas. A primeira foi a definição de que fugir do tema leva o candidato a zerar a redação.
Desde o começo do Enem, cada redação é analisada por dois corretores. Em 2012, se a diferença das notas fosse acima de 200, um terceiro avaliador seria chamado. No ano seguinte, essa margem aceitável caiu para 100 pontos. Presidente do Inep na época, Luiz Cláudio Costa conta que o treinamento dos corretores foi muito aprimorado.
— Houve capacitações regionais, treinamento, eles tinham que escrever e corrigir redações que a gente já sabia a nota. Fomos mais rigorosos na seleção. Excluímos uns, trouxemos outros. E a correção ficou mais objetiva — avalia.
O resultado foi que desabou o número de notas mil. De 2.083 em 2012, foi para 481 no ano seguinte, até cair a 77 em 2016. Depois disso, sempre esteve abaixo de 60, chegando a 22 em 2021, ano com o menor número de inscritos da prova e com impactos educacionais após a pandemia.
Fonte: O GLOBO
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