Aumento de casos de pneumonia bacteriana em crianças pode estar associado à resistência antimicrobiana

A China enfrenta um aumento no número de casos e internações por doenças respiratórias, incluindo pneumonia, em crianças. A tendência gerou um alerta em diversos países e autoridades de saúde, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS), devido ao inevitável “déjà vu” da Covid-19, já que a pandemia do novo coronavírus começou justamente com um aumento de casos de uma “pneumonia misteriosa” na China, no final de 2019.

Porém, o fenômeno observado nos últimos seis meses, especialmente nas cidades do norte do país, tem como um dos responsáveis a bactéria Mycoplasma pneumoniae. E esse surto vem acompanhado de outra preocupação: a resistência do patógeno a antibióticos.

Em sua coluna no GLOBO desta semana, a microbiologista Natália Pasternak, apontou que o crescimento das internações de crianças chinesas pode estar associado à presença de bactérias resistentes aos antibióticos mais usados para tratar esse tipo de pneumonia, conhecidos como macrolídeos, em especial a azitromicina.

Estudos mostram que as taxas de resistência do M. pneumoniae aos macrolídeos em Pequim, por exemplo, estão entre 70% e 90%.

— O fato de haver casos de pneumonia bacteriana na China não é resultado de resistência a antibióticos, mas a resistência pode complicar o tratamento. Uma infecção que normalmente poderia ser tratada em casa acaba se complicando, e o paciente precisar de internação — pontua Pasternak, que é professora da Universidade Columbia e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).

A resistência antimicrobiana e a consequente redução da eficácia dos antibióticos não é algo novo, mas o nível de preocupação global está em crescimento. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) identificou o problema como um dos dez maiores desafios de saúde pública global. Desde então, cientistas têm alertado para o agravamento do problema.

— O aumento da resistência antimicrobiana está avançando de uma forma dramática em todo o mundo porque a comunidade médica e a população em geral não aprendeu com os erros do passado. A gente continua usando indiscriminadamente os antibióticos sem uma indicação correta e isso tem consequências práticas como o surgimento de patógenos resistentes à azitromicina, principalmente em crianças — alerta o médico infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor da Unesp e vice-presidente da Soecidade Brasileira de Infectologia (SBI).

Pasternak explica que o uso indevido de medicamentos nas atividades humanas tem contribuído não só para o surgimento de mais bactérias resistentes, como as chamadas de superresistentes, aquelas que não respondem a mais de um tipo de antibiótico.

— Não é que as bactérias estão ficando mais resistentes com o passar do tempo, e sim nós que estamos selecionando bactérias resistentes com atividade humana de uso indevido médico e de uso indevido em criação animal — avalia a microbiologista.

Queda na eficácia

Um trabalho publicado na revista científica The Lancet Regional Health, conduzido por pesquisadores da Universidade de Sydney, na Austrália, mostrou que diversos antibióticos comuns recomendados para o tratamento de infecções infantis como pneumonia, sepse (infecção generalizada) e meningite já apresentam uma eficácia abaixo de 50%.

— Está cada vez mais difícil tratar infecções em geral pelo uso inadequado dos antibióticos. Já existe, principalmente em nível hospitalar, uma quantidade considerável de pacientes que não têm mais opção terapêutica — ressalta Barbosa.

Uma análise também publicada no periódico The Lancet, no ano passado, que avaliou 204 países e territórios, apontou que as bactérias que não respondem aos antibióticos foram responsáveis diretamente pela morte de 1,27 milhão de pessoas em 2019, número maior do que o causado por doenças como malária e Aids. Indiretamente, a resistência antimicrobiana foi associada a 4,95 milhões de vidas perdidas.

A estimativa aponta que as áreas mais pobres do mundo estão entre as mais atingidas. Na África Subsaariana, por exemplo, há 3 mortes por 100 mil habitantes a cada ano relacionadas problema. Países ricos, no entanto, também sofrem o impacto desse fenômeno.

O uso irracional dos antibióticos é o único fator associado a esse aumento da resistência antimicrobiana. De acordo com Barbosa, a demonstração disso é que em comunidades muito isoladas, onde não há prescrição de antibióticos ou a recomendação clínica é muito restrita, não há sinal dessas bactérias resistentes.

As duas principais formas de uso irracional de antibióticos é o uso desnecessário ou a indicação errada. A primeira situação ocorre quando o antibiótico é usado no tratamento de gripes e resfriados, que são causados por vírus, quando esse medicamento age contra bactérias. Um exemplo recente foi o uso da azitromicina para tratar Covid-19. Já o segundo ocorre quando é administrado o tipo errado de antibiótico para uma infecção bacteriana.

Esse tipo de situação era mais comum quando os antibióticos eram vendidos sem a necessidade de reter a receita médica. Para reduzir a resistência bacteriana, em 2010, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução que exige a apresentação de duas vias da receita médica para a compra de antibióticos. Apesar da exigência, ainda existe abuso, como casos de consumidores que conseguem efetuar a compra sem receita médica ou ainda a prescrição médica incorreta.

— Não há como responsabilizar só a população. Grande parte da prescrição de antibióticos por médicos também é feita de forma completamente desnecessária ou inadequada por falta de conhecimento ou de atualização —diz Barbosa.

Outro comportamento que contribui para a redução da eficácia dos antibióticos, segundo especialistas, é não respeitar o intervalo entre as doses do remédio ou o tempo de tratamento.

É preciso ressaltar ainda que a resistência antimicrobiana crescente não é o único problema associado ao uso indevido dos antibióticos. Como todo medicamento, esses também têm efeitos colaterais, que incluem diminuição da flora normal do intestino, da pele e do pulmão e até reações alérgicas graves.

Recomendações

As principais diretrizes recomendas por autoridades de saúde mundiais para tentar controlar o problema incluem campanhas de utilização consciente de antibióticos; a moderação do uso na criação animal, além de monitoramento de resistência antimicrobiana em hospitais e na criação de animais e fiscalização dessas diretrizes.

— Se não levarmos isso a sério, corremos o risco de ter, no futuro, uma grande perda de vidas humanas por doenças que poderiam ser tratadas com antibiótico, mas que perdemos o arsenal ao longo do caminho — alerta Pasternak.


Fonte: O GLOBO