Petista histórico vê relação mais difícil com o Congresso que no passado e avalia que resultados econômicos e esforços pela paz podem aproximar governo de religiosos

Ministro nos primeiros governos de Luiz Inácio Lula da Silva (Educação, Relações Institucionais e Justiça), Tarso Genro (PT-RS) vê um cenário mais árido para o presidente governar no terceiro mandato, em meio à fragmentação do Congresso. Mesmo com o desafio adicional, o também ex-governador do Rio Grade do Sul afirma, em entrevista ao GLOBO, que o aliado tem conseguido, com “ambiguidades e contradições”, manter a estabilidade de sua base. 

Ela será, agora, posta à prova em votações da agenda econômica, como a da reforma tributária e de projetos para aumentar a arrecadação. A retomada da economia, assim como o desempenho de Lula no conflito entre Israel e Hamas, avalia Tarso Genro, será crucial para o governo ampliar seu apoio e ter adesão de segmentos que não optaram pelo petista nas eleições de 2022, como os evangélicos.

O senhor já afirmou que o terceiro governo Lula é mais difícil do que os anteriores do presidente na relação com o Congresso. Qual a diferença?

É muito pior. Houve uma profunda deformação do sistema político e da representação parlamentar. Hoje, o Parlamento poderia ser composto por seis ou sete blocos. Tem separações, fragmentações. Isso permite que se criem forças novas dentro do Congresso que não só não têm experiência política como têm desejos imediatos de poder a qualquer preço. 

Nesse vazio de autenticidade, surge uma figura como (Jair) Bolsonaro. Lula lida com esses elementos reais do Congresso para existir governabilidade. Você me pergunta, “você gosta disso?”. Não. A visão que tenho de democracia é completamente diferente.

Agora, eu me pergunto também: se eu fosse presidente, eu seria obrigado a fazer isso? Possivelmente, sim, senão não poderia governar. Lula está conseguindo, com essas ambiguidades e contradições, manter estabilidade de uma base que agora tem que partir para estabelecer uma conexão entre a reforma tributária, as desonerações de vários setores e o aumento da arrecadação para o país poder funcionar no ano que vem. Esse é o dilema.

E qual deve ser o limite nessa concessão? O governo fez uma mudança na Caixa (indicando um aliado do presidente da Câmara, Arthur Lira), central para políticas sociais...

Quando os limites entre a moralidade política e as necessidades de Estado se diluem, o limite é a lei. Hoje, no Brasil, os limites tradicionais entre moral e política, que ocorrem em qualquer Estado e democracia, estão muito diluídos, à medida que, nitidamente, por exemplo, os dois presidentes das Casas dizem para o presidente da República: “se tu não dá isso, nós não votamos”.

Qual o desempenho do governo até aqui?

O presidente orientou seu governo em cima de três temas nesse primeiro ano: o arcabouço fiscal, uma nova política externa e o combate à fome e à miséria absoluta. É um programa inicial e essencial para encaminhar outros assuntos. 

Diria que a questão da política externa está exemplar, o combate à fome e à miséria absoluta está em andamento e que nós temos de desatar o nó do arcabouço fiscal. E desatar o nó não é instalar o modelo neodesenvolvimentista, mas fazer a democracia liberal funcionar e fazer funcionarem os pressupostos de proteção social da Constituição. Se chegarmos a esse patamar, vai ser um governo de sucesso.

Para isso, é importante o governo manter a meta de zerar o déficit fiscal?

Se tecnicamente significa déficit zero ou um pouquinho mais ou menos, só os técnicos vão poder dizer. Mas tem que perseguir, é o que gera expectativas. Em uma economia globalizada, dominada pelos interesses rentistas, a expectativa do que vai ser o futuro é fundamental para mobilizar as energias econômicas e financeiras do país. 

(O ministro da Fazenda, Fernando) Haddad está correto. Ele tem que dizer o que disse mesmo: “vou perseguir equilíbrio fiscal”. Não é um problema de querer ou não, é isso que gera estabilidade para governar e para se alcançar uma situação de desenvolvimento estável no país.

A atuação de Haddad o credencia para ser o candidato em 2026 ou é mais provável uma tentativa de Lula se reeleger?

Acho, sinceramente, que o Lula não vai ser candidato. Tem vários nomes e não, necessariamente, tem que ser do PT. Tem que ser uma pessoa com capacidade para liderar uma frente e, dentro desses nomes, é claro que o Haddad é qualificado. Mas acho que indicar ou sugerir seu nome nesse momento não presta um serviço nem para o Haddad nem para o governo.

O governo vai conseguir se aproximar de setores refratários ao PT, como os evangélicos?

Parece estranho, mas vai depender dos resultados da guerra (entre Israel e Hamas), do respeito internacional do Brasil. Do que resultar dessa guerra, para o bem para o mal, os governantes vão ser lembrados. O que fizeram em relação à guerra? Somos um continente pacífico no que se refere às relações internacionais. 

Veja que o (Javier) Milei (candidato da ultradireita na Argentina), que apresentava uma serra elétrica como símbolo de sua campanha, está caindo porque não tem credibilidade. Vai depender também da reação da economia no ano que vem. Se essas duas questões fluírem de maneira adequada para o governo, vão influir de maneira poderosa na consciência média da população brasileira. Serão oportunidades de reconquistar setores religiosos que estão disponíveis para um certo diálogo.

O presidente ainda não anunciou sua escolha para o STF. O que explica a demora?

Lula tem um governo com um sistema de alianças muito complexo. Dentro do governo, inclusive, tem ex-bolsonaristas, não só no primeiro escalão. É um sistema hostil a uma autenticidade, que é pragmático para determinado período e tarefas. Quem detém as informações mais preciosas de quando se mover, para onde se mover, é o próprio presidente.

O presidente deve adotar como critério a escolha de uma mulher para a vaga da ministra Rosa Weber?

Não é o primeiro critério, e sim qual o sentido republicano que o presidente quer dar ao Supremo com esse novo ministro, que vai influir nas decisões do tribunal. Esse (gênero) não pode ser o critério predominante porque o Supremo é uma estrutura universal com o dever de convergência de direitos em decisões públicas de proteção desses direitos, sejam eles quais forem, direitos dos trabalhadores, das mulheres e assim por diante.

O senhor já foi ministro da Justiça e defende criar um Ministério da Segurança Pública. Por quê?

Não se separa mais hoje a segurança pública da segurança de Estado e da nacional. Existe uma interligação global que vem pelos fluxos financeiros legais, dentro do sistema financeiro internacional, e um conjunto de fluxos financeiros ilegais, clandestinos, que passam pelo contrabando de armas, pelo trânsito ilegal de pessoas, garimpo... 

Esses fluxos são os que financiam a criminalidade também dentro do território. As milícias estão aí para comprovar isso. Temos que mudar o nosso conceito de segurança pública.

Como deve funcionar essa nova pasta?

Defendo que componha com o gabinete do presidente um conselho de segurança do Estado, como nos EUA, para harmonizar a estrutura de segurança. Se isso não acontecer, vamos enxugar gelo. Não adianta reprimir as milícias e prender intermediários. São substituíveis. Temos que ter uma visão integrada. 

O ministério tem que desenvolver um trabalho extensivo e em profundidade para a segurança cidadã, desde a qualificação de policiais até as relações com as comunidades através dos conselhos municipais e regionais de segurança para se ter uma ofensiva contra a criminalidade em todos esses níveis. A segurança da paróquia não se resolve só dentro da paróquia. Tem que ter laços nacionais, federativos, e globais.

Como avalia o formato de GLO em portos e aeroportos anunciado pelo governo para lidar com a crise no Rio?

A decisão está apropriada e tem caráter provisório. As Forças Armadas podem prestar ações de apoio nas fronteiras e no controle do tráfego em determinadas regiões, mas não têm que entrar nos combates da segurança pública.


Fonte: O GLOBO