Um dos principais investigadores do passado da África no mundo, Akin Ogundiran, que leciona nos EUA, diz que tudo o que moldou o ser humano ocorreu primeiro no continente
O nigeriano Akin Ogundiran é um dos maiores arqueólogos da África no mundo. Estudioso transdisciplinar e professor da Universidade Northwestern, nos EUA, que abriga um dos maiores centros de estudos africanistas do planeta, ele lidera uma pesquisa sobre o Império de Oyó, na costa ocidental daquele continente, de onde muitos africanos foram levados pelo tráfico transatlântico, boa parte deles para o Brasil. Por isso, inevitavelmente, suas descobertas esbarram em terras brasileiras.
“O estudo da cultura e da história africanas é importantíssimo para entender melhor as contribuições dos africanos e dos povos indígenas também para a construção do Brasil colonial e do subsequente Estado brasileiro”, diz ao GLOBO o pesquisador, que veio ao Brasil na semana passada participar de um evento sobre arqueologias plurais em Florianópolis.
A arqueologia aponta a África como primeiro território habitado no planeta, o que resultou numa profusão de idiomas, religiões, regimes políticos, atividades econômicas... Qual o tamanho real da importância desse tesouro arqueológico e como ele vem sendo estudado?
A África é o berço dos seres humanos, o berço das civilizações. É a região que tem a história mais longa do mundo, porque é mais antiga que outros continentes em termos de habitação humana. Todas as coisas que nos definem como seres humanos aconteceram primeiro na África, não apenas no que diz respeito à revolução biológica, mas também à revolução cultural.
Tudo o que consideramos exemplos da civilização humana, todas as invenções na base do nosso progresso como seres humanos, da mitologia, passando pela tecnologia de ponta, até a construção de cidades, todas essas coisas aconteceram primeiro na África. Portanto, sem estudar a África, não podemos entender o que temos em comum como Humanidade.
E além de compreender a história africana, é fundamental também compreender a dos povos africanos que chegaram aqui (no Brasil) como escravizados. São portadores da herança africana. Precisamos prestar atenção às contribuições dos africanos na África e na diáspora para nossa civilização global. Quando não prestamos atenção nisso, ficamos mais pobres na compreensão do que nos torna humanos.
Museu Nacional da História e Cultura Afro-americana, em Washington, um dos poucos voltados para a herança negra fora do continente africano — Foto: Lexey Swall/The New York Times
O senhor pode contar um pouco sobre seu projeto de pesquisa atual?
Estudo a história de um dos impérios da África Ocidental, o Império Oyó, que começou por volta de 1570 e entrou em colapso por volta de 1840. E esse período também se enquadra na época do comércio de escravizados no Oceano Atlântico.
Meu objetivo, primeiro, é mostrar como se desenvolveu esse importante sistema político na África, mas também compreender as circunstâncias culturais, econômicas e políticas que levaram muitos africanos, especialmente da região do Benin, na África Ocidental, a serem levados pelo tráfico transatlântico de escravos. Porque parte do império cobriu quase todas as áreas de onde vieram muitos afro-brasileiros: fosse o povo Ketu, Oyó.
Estudei esse império também para entender a história da modernidade. Sempre pensamos que a Europa trouxe a modernidade para a África, mas minha pesquisa está mostrando que os africanos coproduziram a modernidade com os europeus e com os nativos americanos. Que não é algo que a Europa trouxe para a África, mas que é uma cultura que foi desenvolvida a partir dessas interações.
Quero dizer que o mundo moderno, tal como o conhecemos, é produto de conversas e interações entre europeus, africanos e nativos americanos.
De que forma isso aconteceu?
Essas trocas definiram e se fundiram no que chamamos de liberdade, direitos humanos, democracia e cosmopolitismo, inclusive sobre gosto. Por exemplo, a ideia de liberdade absoluta era impensável sem a escravidão, e o Estado-nação era imaginável por causa dos impérios.
As trocas que europeus, africanos e nativos americanos tiveram entre si desde que os portugueses estabeleceram contato com os africanos da África Ocidental e Central, em meados do século XV, e as viagens subsequentes às Américas, estimularam uma visão do mundo que mudou as culturas locais e a compreensão do mundo.
Os africanos escravizados usaram a tradução dessa experiência atlântica global, já em curso na África desde meados do século XV, para se adaptarem e criarem novas culturas nas Américas. Ou seja, o estudo da cultura e da história africanas é importante para entender melhor as contribuições dos africanos e dos povos indígenas também para a construção do Brasil colonial e do subsequente Estado brasileiro.
Cais do Valongo: tombado pelo Iphan, maior porto de escravizados no país foi declarado pela Unesco patrimônio histórico da Humanidade — Foto: Hermes de Paula
Aqui no Brasil, especificamente no Rio , um importante sítio arqueológico, o Cemitério dos Pretos Novos, foi descoberto por acaso apenas na década de 1990. Isso é muito comum na diáspora africana ao redor do mundo?
Nos dias de hoje, nos EUA, nos deparamos cada vez mais com estudos de cemitérios de negros americanos que foram pavimentados por novas construções ou totalmente destruídos. Este é um fenômeno muito comum na diáspora africana, que mostra como os locais onde estão os restos de afrodescendentes não costumam atrair atenção e respeito.
Ou seja, da mesma forma que muitos foram desrespeitados e desvalorizados durante a vida, também foram após sua morte. Anos atrás, liderei um trabalho para preservar um cemitério afro-americano na Carolina do Norte, onde fica a instituição em que eu trabalho.
Levei os alunos e a comunidade até lá apenas para limpar o local, que estava abandonado. Eu estava preocupado porque se deixássemos aquele espaço daquele jeito poderiam usar isso como desculpa para que outras pessoas eventualmente assumissem o local. Hoje, este cemitério é um registro histórico nos EUA, e há muitos outros.
Um dos exemplos mais conhecidos, que atraiu atenção global, foi a descoberta de um cemitério afro-americano durante obras do governo federal americano em Nova York. Por causa do ativismo negro na cidade e em todo o país, o local foi preservado para estudos arqueológicos e, após muitos anos de pesquisas, declarado um Marco Histórico Nacional, em 1993.
Com isso, pudemos aprender muito sobre as condições em que os negros viviam em Nova York: entendemos sua dieta, que tipo de doenças tinham devido à natureza do seu trabalho... É também um lugar para as pessoas se curarem de traumas históricos. Ao não preservar esses lugares, e basicamente negligenciá-los, o que nossas sociedades fazem é agravar o trauma da escravidão.
Um movimento recente vem pedindo que os países colonizadores devolvam aos africanos artefatos roubados, que acabaram em museus europeus e nos EUA, por exemplo. Como o senhor vê esse movimento do ponto de vista arqueológico?
É um movimento bem-vindo. A África não perdeu apenas seus habitantes, pessoas que ajudaram no desenvolvimento do mundo moderno como o conhecemos. Também perdemos nossa criatividade, perdemos artefatos. Tomemos o caso do Benin, um reino na Nigéria atacado pelos britânicos em 1897, com uma desculpa bem esfarrapada.
Eles não apenas humilharam o rei, colocando-o em outra parte do país, mas, depois de matarem muitas pessoas, invadiram o palácio e saquearam todos os seus artefatos. São objetos modernos e também documentos históricos. O que aconteceu em 1897 foi um genocídio cultural, porque apagaram a memória e as realizações de um reino africano, ou seja, da civilização africana. Não existe compensação para isso.
Então, o que estamos pedindo agora é que os museus do mundo chequem seus inventários e que esses objetos roubados voltem para seus países, para as comunidades de onde vieram. Nunca é tarde demais. Vejo isso como um direito e espero que, em nome da unidade e da ordem social global, sejam devolvidos.
No Brasil, a cultura africana é crucial na nossa formação como sociedade e está presente em todos os aspectos, na música, na linguagem, na religião. Como o senhor vê essa herança dos escravizados na diáspora aqui e no mundo?
Não haveria música como conhecemos nos dias de hoje se não fosse pela música africana —ou pela música da diáspora africana. Todas as coisas que chamamos de cultura popular hoje vieram dos afrodescendentes. Sim, a cultura africana é extremamente importante para a identidade nacional do Brasil, mas também a dos EUA, outro grande país com muitos descendentes de africanos, mesmo que não tantos quanto o Brasil.
O que seriam os EUA hoje sem hip hop ou rap? Vamos para a Jamaica: os japoneses estão cantando reggae! Não há dúvida de que os descendentes de africanos deram muito ao mundo em termos culturais, e em termos de criatividade.
A cultura popular nos dias de hoje é basicamente a cultura da diáspora africana. É outro exemplo de como podemos criar mesmo nas piores circunstâncias, de como ainda assim podemos trazer algo novo para compartilhar com o mundo. As culturas e as religiões africanas não são dogmáticas, estão abertas, o que torna possível para nós tomar algo emprestado e transformá-lo em algo único.
Fonte: O GLOBO
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