Encontro na última quarta-feira, em São Francisco, tinha como objetivo estabilizar as relações entre as duas superpotências

A sensação de “progresso real” relatada por Joe Biden após a conversa de quatro horas com Xi Jinping reflete a baixa expectativa que havia em torno da reunião entre os dois presidentes da última quarta, em São Francisco. A reabertura do diálogo militar, o resultado mais celebrado, foi na verdade o que deveria ser o mínimo de normalidade entre duas potências nucleares em competição.

Mas o que poderia ser o real efeito concreto do encontro não aconteceu, um entendimento sobre o uso militar de inteligência artificial (IA). Na véspera do encontro, o jornal de Hong Kong “South China Morning Post”, gerou otimismo com uma reportagem dando como certo um acordo de proibição ao uso de IA em equipamentos autônomos como drones e também no controle de arsenais nucleares. Seria um marco para regular as novas tecnologias e reduzir o potencial ainda desconhecido de produzir uma escalada militar.

No fim das contas não houve acordo, apenas a promessa de manter o tema como parte das negociações. China e Estados Unidos têm acelerado o desenvolvimento de sistemas autônomos, robótica e aprendizado de máquinas, e sua competição tecnológica ameaça gerar uma corrida armamentista sustentada pela IA. Como se já não bastasse o risco de confronto causado por falhas humanas em pontos de tensão como Taiwan, por exemplo, a falta de clareza no uso militar da IA poderia levar máquinas a apontar decisões temerárias.

Parece um cenário retirado de um futuro distópico, mas que vem sendo intensamente debatido por especialistas de ambos os países. Na ausência de um sistema de verificação na coleta de dados, uma crise ou conflito poderia mudar rapidamente o cálculo de custo-benefício dos comandos militares, afirma um estudo publicado em março pelo Centro de Segurança e Tecnologia Emergente da Universidade Georgetown, em Washington. Sem um corte claro e sistemático entre os níveis de decisão táticos e estratégicos, adverte o estudo, “existe a possibilidade de que a IA e a automação transfiram cada vez mais o processo deliberativo para as máquinas”.

Ao longo da Guerra Fria, Washington e Moscou assinaram uma série de acordos de controle de armas para administrar sua rivalidade e reduzir o risco de uma guerra nuclear. A retomada dos canais de diálogo militares entre EUA e China anunciada no encontro desta semana de Biden e Xi é um sinal positivo em meio à desconfiança crescente entre as duas potências, mas será preciso ir além para eliminar riscos que nenhum dos lados quer correr. Não é uma questão apenas entre as duas potências. Em fevereiro os EUA lançaram uma declaração destinada a criar normas sobre o “uso responsável” de inteligência artificial para fins militares. Desde então, 45 outros países endossaram a iniciativa, entre eles aliados tradicionais como Reino Unido, França, Alemanha e Coreia do Sul, mas também alguns que costumam mostrar resistência a projetos americanos, como Líbia. O Brasil não aderiu.

A China, como se esperava, também não. Segundo o especialista chinês em estratégia nuclear Tong Zhao, do centro de estudos Carnegie Endowment, a estratégia diplomática de Pequim mantém-se focada em rivalizar e contrabalançar os esforços dos EUA em determinar os padrões de governança da AI, especialmente na esfera militar. Em termos de novas tecnologias militares, o governo chinês resiste a endossar “práticas responsáveis”, por considerar que elas carecem de clareza e estão atreladas a objetivos políticos, disse Zhao ao portal de assuntos militares “Breaking Defense”.

A mesma dinâmica de competição move também os EUA. Por motivos semelhantes, Washington rejeitou um tratado internacional vinculativo (de aplicação obrigatória) que era apoiado pelo Brasil e vários outros países para regular ou banir armamentos letais autônomos, também conhecidos como “robôs assassinos”. A rejeição foi fundamentada pelo temor do governo americano de perder terreno para Pequim na corrida tecnológica, como deixou claro em 2018 o então secretário de Defesa, Jim Mattis.

— O foco principal da segurança nacional dos EUA não é o terrorismo, mas a competição de longo prazo - disse o general em audiência ao Senado.

Mudou o governo o americano, Joe Biden assumiu o lugar de Donald Trump, mas o foco continua o mesmo.


Fonte: O GLOBO