Parentes afirmam que MP português apura se crianças foram favorecidas em tratamento após suposta intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, que nega irregularidades

A ex-ministra da Saúde de Portugal Marta Temido quebrou o silêncio sobre o caso das gêmeas brasileiras que receberam o "medicamento mais caro do mundo" num hospital do país. O fato passou a ser alvo de investigações das autoridades portuguesas depois de uma emissora local citar indícios de supostas irregularidades no processo de admissão das crianças. A suspeita é que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e a ex-titular da Saúde tenham atuado para que elas recebessem o Zolgensma, cuja dose é estimada em 2 milhões de euros (R$ 10,7 milhões), pelo sistema público.

Em entrevista ao "Público", Marta Temido disse estranhar relatos de médicos sobre o caso das gêmeas e ressaltou que, segundo a lei do país, as meninas (que também têm nacionalidade portuguesa) tinham direito de receber o medicamento mesmo sem morarem em terras lusitanas. Ela defendeu o presidente e disse que Marcelo Rebelo de Sousa reencaminhou a autoridades outros casos semelhantes para avaliação.

— Não tive qualquer contato com o presidente da República relativamente a este caso, nem dei qualquer orientação sobre o tratamento destas crianças — disse ela. — Apurei que o pedido de verificação do que se passava com este caso entrou no Ministério da Saúde junto com outros pedidos. É o circuito normal. Quando um cidadão apresenta uma reclamação a uma entidade, quer seja ao presidente da República, ao gabinete de um ministro, até aos deputados, há um circuito predefinido. Normalmente, dá-se entrada a esse pedido. Foi o que o Ministério da Saúde fez com esse documento que vinha do gabinete do primeiro-ministro e que canalizava um documento da Casa Civil da Presidência da República.

Segundo a TVI, a primeira consulta das meninas no hospital teria sido marcada pelo então secretário de Estado, Lacerda Sales. A ex-ministra defendeu a legalidade da admissão das pacientes e rebateu questionamentos sobre outras crianças, com quadro de saúde semelhante, que ainda estão na fila.

— Espero que o processo avalie pelo menos três questões: se houve ou não houve uma interferência indevida; se as crianças deveriam ou não ter sido tratadas e, em última instância, se o medicamento utilizado deveria ser aquele ou outro. Se as crianças tinham ou não tinham direito de serem tratadas no sistema público, daquilo que conheço do processo, diria que sim. Outro tema é se houve ou não houve uma interferência de terceiros indevida. Sobre isso, não sei. O que posso dizer é que não passou por mim — destacou ela, que alegou questões burocráticas para o atraso no tratamento de outros pacientes.

Entenda o caso

A família das gêmeas brasileiras denunciou esta semana ser alvo de xenofobia e ataques de ódio desde que a emissora TVI apontou indícios de irregularidades no processo de admissão das pacientes. O Ministério Público português abriu um inquérito para investigar se as brasileiras foram favorecidas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, para receber o remédio. Isso, após uma suposta intervenção do presidente do país europeu, Marcelo Rebelo de Sousa.

Em entrevista ao português "Jornal de Notícias", o advogado da família das brasileiras, Wilson Bicalho, afirmou que as meninas e os pais agora têm medo de voltar a Portugal.

— As meninas têm uma consulta em janeiro, no hospital, mas, tendo em conta as notícias que têm sido publicadas, é impossível viajarem em segurança do Brasil para Lisboa — destacou.

Maitê e Lorena têm, hoje, 5 anos de idade. Elas receberam o medicamento Zolgensma, considerado popularmente "o mais caro do mundo", em junho de 2020, para tratar uma doença neurodegenerativa rara: a atrofia muscular espinhal (AME). No entanto, reportagem da emissora TVI que foi ao ar no início do mês levantou suspeitas sobre o trâmite do tratamento, custeado com dinheiro público.

Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal — Foto: AFP

Nesta terça-feira, em reação à notícia da abertura de inquérito pelo MP nacional, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa saudou a abertura da investigação e disse estar "tranquilo". Ele nega, desde a primeira fala pública sobre o caso, em 4 de novembro, ter feito qualquer gesto em favor das brasileiras.

— Eu, aliás, tinha falado nisso na minha intervenção do dia 4 de novembro, que era importante o esclarecimento dessa matéria, ou por iniciativa daqueles que trabalhavam na instituição em causa, ou por auditoria interna ou por qualquer forma de investigação. Está aberto um inquérito, e eu estou satisfeito com isso — ressaltou, sem responder perguntas dos jornalistas.

Segundo o MP português, o inquérito corre no Departamento de Investigação e Ação Penal Regional de Lisboa e, por ora, não mira qualquer pessoa suspeita. O caso também é alvo de apuração da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e de auditoria interna no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (o Hospital de Santa Maria integra o complexo).

Suspeitas de favorecimento

De acordo com a TVI, a equipe de neuropediatria do Hospital de Santa Maria chegou a se opor ao tratamento das gêmeas brasileiras. A resistência se deveu à falta de clareza sobre o encaminhamento das pequenas à unidade de saúde — o caso não havia sido encaminhado por especialistas, e as crianças jamais haviam pisado em Portugal antes daquele momento.

Além disso, ainda segundo informações da mídia portuguesa, as bebês não tinham inscrição no SUS português, uma exigência dos trâmites. Os profissionais enviaram uma carta aos gestores do hospital para que o remédio não fosse ministrado a Maitê e Lorena, com menção a outras crianças portadoras da mesma doença e elegíveis para o tratamento. A unidade não soube explicar à TVI como as brasileiras foram admitidas. Justificou que o registro e a inscrição das meninas haviam se perdido.

Em entrevista à emissora, a mãe das crianças, Daniela Martins, negou qualquer interferência do presidente para a admissão das meninas. No entanto, ao fim da entrevista, num momento em que as câmeras ainda estavam ligadas sem que ela soubesse, confirmou a investida política.

— Eu fui lá e dei de cara com a médica. Ela falou para mim que não ia dar [o remédio], que não tinha mandado eu ir lá. Aí a gente usou nossos contatos, né? Aí entrou o pistolão que você falou — disse ela, que é filha de um português, tirou a nacionalidade já adulta e a estendeu às filhas. — Conheci a nora do presidente, que conhecia o ministro da Saúde [ministra, na época], que mandou e-mail para o hospital.

À mídia portuguesa, os envolvidos negaram relação com o caso.


Fonte: O GLOBO