Em 2023, o Brasil se tornou o terceiro principal destino dos migrantes venezuelanos na América Latina, com uma população de mais de 500 mil pessoas
Um apagão no ápice da crise política e econômica na Venezuela fez Karen Uchoa, de 26 anos, e seu marido, Wendell Camejo, abandonarem o país em 2019. Recém-formados em Psicologia, eles já sofriam com os altos índices de desemprego, mas nada comparado às semanas em que viveram no escuro, sem água nem comida.
— Depois que o país inteiro ficou parado por duas semanas consecutivas, sem eletricidade, as coisas começaram a piorar e decidimos que não dava mais — conta Karen, que hoje é professora de espanhol em um curso de idiomas ministrado por refugiados no Rio de Janeiro e desenvolvedora web.
A história do casal é um retrato dos mais de 510 mil venezuelanos que deixaram tudo para trás e vivem no Brasil, segundo dados do governo federal. Um movimento recorde que, em 2023, elevou o país da quinta para a terceira posição no ranking de principais destinos da população na América Latina. Mundialmente, o Brasil é a quarta nação que mais acolhe venezuelanos, atrás apenas da Colômbia, Peru e Estados Unidos, respectivamente.
Os venezuelanos Karen e Wendell durante passeio no Rio de Janeiro, onde vivem hoje — Foto: Arquivo pessoal
Hoje, os venezuelanos já são a maior população de imigrantes no território brasileiro, mas este número pode aumentar ainda mais com o acirramento das tensões entre a Venezuela e a Guiana por Essequibo, região rica em petróleo que também faz fronteira com o Brasil.
A secular disputa, reavivada recentemente pelo governo de Nicolás Maduro, é vista por analistas como uma tentativa do ditador de angariar popularidade — na expectativa de que, num contexto de eleição presidencial no ano que vem, o nacionalismo ofusque a profunda crise na qual o país se afundou.
Mas os problemas que motivaram mais de 7,7 milhões de pessoas a deixarem a Venezuela nos últimos anos persistem, e há quem acredite que eles podem se agravar ainda mais com um possível conflito armado no horizonte.
— A crise migratória dura há muito tempo porque as suas causas persistem e até pioraram com o tempo. Primeiro porque a economia do país não se recuperou, segundo pois não há perspectiva de que a situação política mude no curto ou mesmo no médio prazo — analisa Mariano de Alba, assessor sênior e especialista em Venezuela do Crisis Group.
Mas os problemas que motivaram mais de 7,7 milhões de pessoas a deixarem a Venezuela nos últimos anos persistem, e há quem acredite que eles podem se agravar ainda mais com um possível conflito armado no horizonte.
— A crise migratória dura há muito tempo porque as suas causas persistem e até pioraram com o tempo. Primeiro porque a economia do país não se recuperou, segundo pois não há perspectiva de que a situação política mude no curto ou mesmo no médio prazo — analisa Mariano de Alba, assessor sênior e especialista em Venezuela do Crisis Group.
Interiorização como estratégia
Desde 2018, quando o governo brasileiro deu início à Operação Acolhida para responder ao enorme fluxo de migrantes vindos da Venezuela, quase 1 milhão de venezuelanos entraram no país, a maioria pela cidade de Pacaraima, em Roraima. Além dos postos de recepção, o programa conta com abrigos e postos de interiorização — uma estratégia para diminuir a pressão sobre os serviços públicos do estado e integrar os imigrantes ao mercado de trabalho em diferentes partes do país.
Para Carolina Nunes, gerente na ONG Refúgio 343, que apoia o governo no processo de interiorização, a ideia de que os imigrantes colaboram para o desemprego da população local é uma falácia.
— Há muitas evidências de que os imigrantes incentivam a criação de empregos e o desenvolvimento da economia local, então eles complementam a força de trabalho que já existe e não competem — argumenta Nunes, afirmando que o grupo também contribui para a maior diversidade de serviços e representa mais um mercado de consumidores.
Perfil dos imigrantes e dados sobre os venezuelanos interiorizados na Operação Acolhida nos últimos cinco anos — Foto: Arte/O Globo
Até outubro, a Operação Acolhida registrou mais de 117 mil venezuelanos interiorizados, espalhados por mais de mil municípios. Isso equivale a quase um quarto dos venezuelanos que vivem no país.
Os estados mais visados ficam Sul, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e a Organização Internacional para as Migrações (OIM), da ONU. De acordo com o Caged de outubro, a região é responsável pelo maior número de postos de trabalho para a população migrante. No entanto, segundo Niusarete de Lima, coordenadora do Subcomitê Federal de Interiorização da OIM, o fenômeno se explica também por questões familiares.
— Um fator que contribui para isso é a industrialização e oferta de trabalho mais ampla, o que facilita a integração econômica dos refugiados e migrantes — analisa a coordenadora. — O fato de as pessoas serem interiorizadas para essas localidades também alimenta um novo ciclo, pois além de haver a opção laboral, os novos participantes vão também pela reunificação familiar.
'Isso aqui não é uma democracia'
Apesar de 88% dos venezuelanos que migram para o Brasil virem acompanhados por familiares, para alguns a situação ficou tão insustentável que a única alternativa foi tentar a sorte sozinho. É o caso de Pedro Luis Zamora, estudante LGBTQIA+ que decidiu sair do país em 2018, quando tinha apenas 20 anos, deixando para trás a família e a faculdade de Engenharia Ambiental. Para ele, a gota d'água foi assistir seus amigos serem presos em protestos contra o governo de Nicolás Maduro.
— Eu pensei: "isso aqui não é uma democracia". Nos protestos, eu sentia que havia uma perseguição política, a homofobia e o machismo reinam — afirma Zamora. — O casamento entre pessoas LGBTQIA+ ainda é ilegal, pessoas trans não podem mudar seus documentos, [o preconceito] é uma questão tanto institucional quanto cultural.
Hoje, cinco anos depois da sua chegada por Roraima e após ter passado pelo processo de interiorização, Zamora trabalha na organização Aldeias Infantis SOS no Rio de Janeiro e sonha em estudar Tecnologia da Informação (TI). No início, porém, o jovem precisou morar por um tempo num abrigo.
— Passei por situações de preconceito em Roraima por não saber o idioma e por lá ter muitos venezuelanos. Eu entregava meu currículo e não aceitavam, já chegaram a rasgá-lo na minha frente — relata, destacando que não são raras as histórias de violência. — Conheço pessoas que moravam na rua e foram agredidas.
O venezuelano Pedro Luis Zamora em seu trabalho na Aldeias Infantis SOS, no Rio de Janeiro — Foto: Arquivo pessoal
De acordo com Alba, a migração venezuelana era bem vista pelos países vizinhos inicialmente, já que o perfil das primeiras pessoas que chegaram era de maior escolaridade. A situação começou a mudar com o aprofundamento da crise, que motivou o êxodo de uma camada mais pobre da população.
— A situação econômica na região começou a se deteriorar e isso coincidiu com a migração de muitos venezuelanos desesperados para sobreviver, que tiveram que se juntar à economia informal em muitos países — afirma Alba. — Como resultado, houve fenômenos preocupantes, como a xenofobia, geralmente ligada ao fato de que algumas pessoas acham que os venezuelanos vêm para roubar oportunidades dos locais ou os associam diretamente ao aumento das taxas de criminalidade em algumas cidades.
'Guerra do povo contra o povo'
A médica venezuelana Lígia Carmo, 40 anos, até conseguiu passar pelos anos mais críticos da crise, mas a situação ficou mais difícil no ano passado, quando se viu divorciada e com três filhos para criar. Grávida, ela cruzou a fronteira de Roraima com sua filha de 16 anos, seu filho de 6, e sua bebê na barriga, que pariu em um abrigo da Operação Acolhida.
A venezuelana Lígia Carmo — Foto: Arquivo pessoal
— Amo a Venezuela, mas não era possível viver. Ganhava muito pouco e um salário péssimo. Além da miséria, tem a questão política: há uma guerra do povo contra o povo — justifica Lígia. — O que me fez decidir vir ao Brasil foi a esperança de oferecer melhores condições para minhas crianças, que tenham uma profissão e uma vida digna.
A médica morou em Roraima com os filhos por sete meses até conseguir ser interiorizada, em idas e vindas por abrigos. Hoje, ela trabalha como cuidadora na Aldeias Infantis SOS, no Rio de Janeiro, e aguarda a validação do seu diploma no Brasil.
Fonte: O GLOBO
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