Coautor de novo livro sobre trabalho em plataformas, Rafael Grohmann, da Universidade de Toronto, alerta para invisibilidade de atividades ligadas às novas tecnologias, muito além de motoristas e entregadores

Professor de Estudos de Mídia na Universidade de Toronto, no Canadá, o pesquisador brasileiro Rafael Grohmann tem se dedicado a acompanhar de perto os esforços de regulação do trabalho por plataformas digitais no Brasil e em outros países. O tema é abordado em um livro introdutório ("Trabalho por Plataformas Digitais", pela Edições SESC), escrito em parceria com Julice Salvagni, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e lançado esta semana no Rio.

Grohmann é um dos coordenadores do projeto Fairwork no Brasil, vinculado à Universidade de Oxford, pesquisa que mostrou, em julho, que as principais plataformas de entregas, transportes e outros bicos no país não garantem pagamento mínimo de R$ 6 por hora, equivalente ao salário mínimo, além de condições de trabalho decentes.

Os desafios, porém, vão além dos entregadores e motoristas de aplicativo. O pesquisador alerta, em entrevista ao GLOBO, que há um conjunto de “microtrabalhos”, como moderadores de conteúdos violentos em redes sociais ou anotadores de dados que ajudam a treinar sistemas de inteligência artificial, que tem ficado de fora das discussões e são invisibilizados na formulação de políticas públicas. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Rafael Grohmann, professor de Estudos de Mídia na Universidade de Toronto — Foto: Divulgação

O livro aborda como não há apenas um perfil dos trabalhadores por plataformas. O debate sobre o tema ainda está muito focado nos aplicativos de transporte e entregas?

Há um debate sobre se as empresas que controlam plataformas são empresas de tecnologia ou empresas de cada setor. Isso está na base da discussão porque uma empresa de educação ou uma empresa que vai oferecer trabalho doméstico podem usar plataformas. Entre 2009 e 2018, entre as maiores empresas do mundo, só dois setores cresceram: tecnologias e serviços financeiros.

Não significa que todas as empresas viraram empresas de tecnologia, mas que todos os setores então se adaptando ou estão atuando a partir de lógicas ao mesmo tempo tecnológicas e financeirizadas. O debate público ficou excessivamente centrado nos entregadores e nos motoristas. Não significa que isso não seja relevante. Só no Brasil, são 1,5 milhão de entregadores e motoristas que atuam por plataforma. Mas invisibilizar todo o restante significa que estamos discutindo e criando leis que podem acabar sendo generalizadas, mas pensando em categorias muito específicas. Essa é uma armadilha de regulação desse tema na maior parte do mundo.

Quais sãos essas outras atividades?

Há desde atividades que historicamente já existiam, e nas quais a subordinação às plataformas muda algumas das suas dinâmicas, a todo um espectro de atividades que nascem a partir da plataformização, que vai desde os moderadores de conteúdo que ajudam a limpar manualmente das mídias sociais tudo o que há de lixo na internet, seja fotos de esquartejamento ou pedofilia, aos trabalhadores que treinam dados para inteligências artificiais e ajudam a melhorar seus sistemas.

Os anotadores de dados não estão, no mundo, nem nas regulações que envolvem trabalho para plataformas nem nas regulações para inteligência artificial. Então em um limbo regulatório. São trabalhadores que estão no sul global, principalmente na América Latina, África e sudeste asiático, e atuam para plataformas no norte global.

A revista Time mostrou, por exemplo, que trabalhadores quenianos ganharam menos de US$ 2 (R$ 9,85) no desenvolvimento do ChatGPT. Há ainda pessoas que clicam, comentam e curtem contas em mídias sociais, em serviços paralelos oferecidos por supostas empresas de marketing, e voltados para influenciadores e celebridades, as chamadas fazendas de clique.

Quais são as consequências dessa invisibilidade?

A invisibilidade das condições de trabalho se transforma também em uma invisibilidade de políticas públicas. No trabalho remoto, é mais difícil acessar o que se passa realmente e pensar políticas públicas para esses trabalhadores.

Um entregador está na rua, você o encontra na porta de casa. Outra dimensão é de gênero. As pesquisas mostram que, nos chamados microtrabalhos no Brasil, há uma maioria de mulheres. São mulheres que conciliam essas funções para as plataformas com um trabalho de cuidado e doméstico. Elas cuidam da casa e precisam de uma renda extra.

Há pouca percepção de que a automação depende do trabalho humano?

É interessante porque há um debate clássico sobre se os robôs vão nos substituir. Ele vai e volta há séculos, desde os primeiros ludistas (movimento de trabalhadores ingleses contra a automação, no início da Revolução Industrial, no século XIX) à inteligência artificial generativa.

O que a gente tem visto historicamente é que, em vez de uma automação, a gente tem vivido o que os autores chamam de “heteromação”, que basicamente é reconhecer que existe um papel humano em um processo que envolve inteligência artificial.

Um exemplo é que as plataformas de delivery prometem que vão fazer as entregas por drones daqui a um tempo. Mas, nos testes que envolvem drones, você tem menos entregadores, e fazendo corridas curtas. 

Mas em vez de uma automação completa, há o papel de monitores de drones. Há uma reconfiguração dos fluxos e dos processos de trabalho, mas não necessariamente uma eliminação de postos de trabalho. Nesse caso, é um trabalho mais precário porque você vai diminuindo o número de pessoas e apertando essas pessoas nos seus postos.

O governo Lula criou um grupo de trabalho para discutir uma regulação voltada para o trabalho em aplicativos de transporte e entrega, mas não houve acordo. Qual é a dificuldade?

Não deu certo. Há um lobby das empresas em relação a quais devem ser os parâmetros mínimos ou quais devem ser os princípios considerados nessa regulação.

Houve também, entre os trabalhadores, uma disputa entre os sindicatos tradicionais, que estão começando a se apropriar da pauta do trabalho por plataformas e que os trabalhadores das plataformas não reconhecem como representantes legítimos, e associações emergentes, que são mais jovens, sem tanta experiência no trato institucional dessa relação de negociação, mas que têm maior relação com a base dos trabalhadores. E entre as próprias associações há diferentes abordagens.

Quais foram os principais impasses?

Houve uma disputa em relação ao que é a hora trabalhada. Para as empresas, é a hora em que o motorista pega o passageiro ou mercadoria e conclui o trajeto. Para os trabalhadores, a hora trabalhada envolve o momento em que você loga no aplicativo e espera a corrida.

Outra discordância é qual vai ser a tarifa mínima considerando também os custos para a atividade. E isso varia para cada subsetor. O custo de você manter uma moto é diferente de uma bicicleta, que por sua vez tem riscos associados a andar pela cidade que são diferentes de um carro, por exemplo.

Como avalia o papel do governo nessa negociação?

Não se chegou a discussões mínimas e o próprio governo apressou a pauta sem necessariamente saber sobre ela, porque o presidente Lula quer dar uma resposta. É muito estranho porque, ao mesmo tempo em que Lula viaja aos Estados Unidos para se reunir com Joe Biden (presidente dos EUA) para um acordo sobre trabalho decente no Brasil e Estados Unidos, que foi celebrado como um grande pacto internacional, os trabalhadores ameaçavam greve porque o governo não queria reconhecer o mínimo dos princípios de trabalho decente.

Então, tem essa desconexão entre a política externa do governo em relação ao que quer projetar e por isso quer lançar logo uma política, e a insatisfação dos trabalhadores com essa negociação. O tiro, inclusive do ponto de vista eleitoral, pode sair pela culatra.

No livro, é abordada ainda a necessidade de se avançar sobre os direitos dos trabalhadores aos dados. Qual a centralidade dessa frente?

Entender o negócio das plataformas de trabalho envolve pensar que elas não lucram somente com as atividades dos setores dos quais extraem valor, mas também o papel dos dados nisso. Os trabalhadores têm que estar coletivamente cientes de que é necessário disputar os vínculos, mas também quais os dados que as plataformas coletam sobre eles.

Que dados são esses? Para que servem? Podem ser vendidos? As plataformas, principalmente de mobilidade urbana, acabam tendo mais dados sobre tráfego urbano que as próprias cidades. Elas sabem mais sobre o perfil de comportamento de alimentação da população do que agências públicas. Isso tem muito valor e tem de considerado nas negociações coletivas.

Quais são as saídas debatidas para além da regulação?

Há todo um movimento pelo mundo para construir plataformas cooperativas ou um cooperativismo de plataformas, em que se busca articular o potencial tecnológico de plataformas com uma lógica de trabalho mais coletivizada, com gestão democrática do trabalho, com dados para o bem comum e igualdade nessa gestão.

Isso passa por várias iniciativas de construção de tecnologias, por construir um compartilhamento de recursos de infraestrutura. São desafios que demandam políticas públicas. O governo federal pode atuar com essas políticas, em articulação com os governos municipais.


Fonte: O GLOBO