Dos 2.121 cargos que deveriam formar a estrutura da ANM, há apenas 664 ocupados; especialistas dizem que situação contribuiu para as tragédias recentes

A desestabilização do solo de cinco bairros de Maceió após o rompimento de uma mina da Braskem escancarou a falta de pessoal do principal órgão de fiscalização desse tipo de atividade no Brasil. Apenas um fiscal da Agência Nacional de Mineração (ANM) trabalha na região, o que torna o monitoramento precário e aumenta a dependência de envio de dados pelas próprias mineradoras. 

A escala do problema é ainda maior: dos 2.121 cargos que deveriam formar a estrutura da ANM desde a sua criação em 2017, há apenas 664 ocupados. Destes funcionários, só 237 são fiscais.

A situação de hoje reproduz o que já havia sido denunciado nas tragédias de Mariana e Brumadinho, em Minas, quando houve falhas na identificação de instabilidades nas barragens. Investigações do Ministério Público levantaram evidências de que laudos de estabilidade, produzidos pelas empresas ou auditorias independentes, teriam sido fraudados antes dos rompimentos. Outros inquéritos ainda apontaram omissões da ANM.

Fiscalização precária — Foto: Editoria de Arte

Por causa da precariedade nas condições de trabalho, o que incluía também a demanda pela equiparação salarial com as carreiras das demais agências reguladoras, os servidores da ANM ficaram em greve por 52 dias, entre agosto e outubro. 

No mês passado, o Ministério da Gestão e da Inovação assinou um acordo com a Associação dos Servidores da Agência Nacional de Mineração (ASANM) para garantir a equiparação salarial.

— É inviável a gente fiscalizar o que tem que ser fiscalizado. Por isso fazemos por amostragem, e mesmo assim é menos do que deveria, porque não tem gente — afirma Ricardo Peçanha, diretor da ASANM, que explica que a fiscalização das atividades de mineração funciona como uma declaração de imposto de renda. 

— As empresas de mineração fazem relatório anual, com toda parte técnica, e cruzamos com outros bancos de dados. Quando identificamos inconsistência, aí sim é que vamos a campo — acrescenta.

Registro de Ana Branco dos escombros de habitação em Paracatu de Baixo, distrito de Mariana, em Minas Gerais, deixamos pela enxurrada de rejeitos de minérios da Samarco em 2016 — Foto: Divulgação/Ana Branco

Em 2019, após notícias de falhas nas fiscalizações das barragens de Brumadinho e Mariana, o Ministério Público Federal assinou acordo com a União e a ANM para que melhorassem as condições de inspeções em todas as barragens consideradas inseguras e para que fosse apresentado um plano de reestruturação da fiscalização. 

A medida, porém, não resolveu todos os problemas. Ano passado, o TCU publicou uma Lista de Alto Risco da Administração Pública, em que apontou áreas onde há riscos da qualidade dos serviços públicos e da eficácia das políticas públicas serem comprometidas. Segundo o TCU, na ANM há insuficiência de materiais de tecnologia da informação e de recursos humanos, além de déficit orçamentário e falta de transparência.

Também em 2022, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou relatório sobre a governança regulatória no setor de mineração no Brasil e destacou a negligência da fiscalização nas tragédias em Minas: “A ANM enfrenta severas restrições em termos de recursos e funcionários, o que dificulta sua capacidade de realizar a supervisão e ações de fiscalização”, diz o relatório.

— A ANM tem um número de servidores claramente aquém do necessário. Deveria ter ações de controle com muito mais frequência e intensidade — afirma Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.

As instabilidades no solo provocados pela extração de sal-gema em Maceió (AL) fizeram com que 60 mil moradores de cinco bairros deixassem suas casas desde 2018, quando os problemas começaram a ser identificados. No final de novembro, a velocidade do afundamento do solo chegou a cinco centímetros por hora, e no último dia 10 de dezembro a mina 18 da Braskem se rompeu. 

Documentos obtidos pela Comissão Externa da Câmara dos Deputados que acompanha o caso mostram como a fiscalização e as cobranças sobre a empresa foram falhas. Os primeiros tremores foram denunciados em 2018, mas só dois anos depois a Braskem foi multada, com dez autos de infração em um dia por não ter tomado “as providências indicadas”. Cada uma das multas variava entre R$ 2.597,75 e R$ 5.195,50.

— O resultado dessa falta de material humano cobrando e exigindo que as condicionantes sejam cumpridas tem como resultado o que aconteceu em Maceió. A ANM só veio a multar a Braskem em 2020, isso já mostra a leniência na fiscalização. Se a fiscalização tivesse ocorrido da maneira adequada, isso tudo poderia ter sido evitado — afirma o deputado federal Alfredo Gaspar (União).

Professor da Faculdade de Engenharia da UFJF e autor de um relatório sobre Brumadinho, Bruno Milanez explica que os rompimentos explicitaram as falhas na fiscalização por amostragem.

— Essa fiscalização depende muito dos dados das empresas de consultoria, que podem acabar não sendo confiáveis. O sistema é falho, mas a ANM não tem capacidade de superar isso por falta de gente — disse.

Bombeiros no ponto do rompimento da Barragem de Brumadinho — Foto: Divulgação/ Corpo de Bombeiros de Minas Gerais

Um dos casos mais graves dessa relação com auditoras independentes virou processo judicial: O Ministério Público de Minas Gerais apura se a Vale chantageou funcionários da empresa alemã Tüv Süd para que atestassem a estabilidade da barragem de Brumadinho. Um outro processo judicial corre na própria Alemanha.

Milanez também destaca que a precariedade da ANM afeta a divulgação e a transparência de dados que impactam a população. No ano passado, por exemplo, uma resolução da própria agência determinou que mineradoras enviassem a ela as chamadas áreas de manchas de inundação, que indica as áreas de uma cidade potencialmente afetadas em casos de rompimento de barragens. Antes, as empresas eram obrigadas apenas a entregarem as informações às prefeituras e defesas civis, mas os dados não costumam ser publicizados.

Mesmo após receber os dados, a ANM não divulgou as áreas na internet, como havia prometido. Em resposta a um pedido de informações de Milanez, a agência admitiu que não havia gente suficiente para trabalhar os dados.

— Essas informações são importantes para o morador saber se mora em região afetada ou não. Eu consegui os dados brutos via Lei de Acesso à Informação e passei para o site Repórter Brasil, que contratou um geógrafo e publicou as áreas de mancha. Fizeram o trabalho que a ANM tinha que fazer.

Garimpo ilegal também não é fiscalizado

Além da fiscalização de barragens e minas, a ANM é ineficiente no combate ao garimpo ilegal, um mercado que de 2018 a 2020 comercializou 104,5 toneladas: 52% com indícios de ilegalidade, segundo estudos do Instituto Escolhas. A fraude costuma acontecer por uso de “títulos fantasmas”. Como o comércio funciona por autodeclaração, o garimpeiro registra que o minério foi retirado de uma área autorizada, quando na verdade o retirou de Unidades de Conservação ou Terras Indígenas.

A ANM sequer consegue negar pedidos para garimpos em áreas protegidas na Amazônia. De acordo com levantamento do Amazônia Minada, com base nos dados da agência, há 2.997 requerimentos ilegais — por incidirem sobre áreas protegidas — tramitando na Amazônia Legal. A Terra indígena mais afetada é a Yanomami.

Muitas vezes, garimpeiros acumulam requerimentos na expectativa de alguma decisão judicial ou administrativa autorizar a exploração. Por isso, especialistas cobram que sejam imediatamente negados.

— Esperar que a ANM de fato faça gestão e controle efetivo sobre a cadeia do ouro não nos parece ser factível com as condições de estrutura, recursos humanos e de orçamento vivenciadas pela ANM — afirmou Ricardo Peçanha.

Procurados, a ANM e o Ministério de Minas e Energia não se manifestaram.


Fonte: O GLOBO