Em conferência de apoio a Kiev, presidente francês disse que mobilização das forças terrestres 'não pode ser excluída'; envolvimento de membros da Otan provocaria 'inevitabilidade' de confronto, alerta Kremlin

O porta-voz do Kremlin disse nesta terça-feira que um possível envio de tropas para a Ucrânia "não convém" ao Ocidente, em resposta a uma declaração feita no dia anterior pelo presidente francês, Emmanuel Macron, sobre não descartar um potencial envio de tropas ocidentais a Kiev. A fala causou inquietação dentro da própria França e entre líderes europeus, que endossaram a ajuda à Kiev, mas rejeitaram a mobilização de forças terrestres para um confronto direto.

— Não convém a esses países de forma alguma, e eles devem estar cientes disso — disse Dmitry Peskov aos repórteres, afirmando que o simples fato de levantar essa possibilidade supõe "um novo elemento muito importante" no conflito. Países como Alemanha, Espanha, Reino Unido e a própria França integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a principal aliança militar do Ocidente.

Peskov comentou que o Kremlin está "ciente da posição de Macron sobre a necessidade de infligir uma derrota estratégica à Rússia". Dias antes do "aniversário" de dois anos da guerra na Ucrânia, Moscou reivindicou avanços importantes nas frentes de combates, inclusive com a conquista de Avdiivka, uma cidade no leste ucraniano que havia se tornado um símbolo de resistência para Kiev. As tropas ucranianas, por sua vez, têm enfrentado problemas com seu estoque de munições cada vez mais escasso — um dos grandes "calcanhares de Aquiles" do apoio ocidental à Kiev.

A fala de Macron ocorreu durante uma conferência de apoio à Ucrânia, em Paris, no momento em que países aliados de Kiev tentam angariar apoio, especialmente militar. O presidente francês afirmou que fará "tudo que for necessário para garantir que a Rússia não vença essa guerra", uma vez que a derrota de Moscou, na visão do líder da França, "é indispensável para a segurança e a estabilidade na Europa".

— A Rússia está adotando uma atitude mais agressiva não apenas na Ucrânia, mas contra todos nós em geral — advertiu, afirmando que o "fortalecimento" da postura russa foi visto na morte de Alexei Navalny, em 16 de fevereiro, um dos principais opositores do presidente Vladmir Putin.

O presidente francês anunciou a criação de uma coalizão internacional para fornecer mísseis e bombas de médio e longo alcance aos ucranianos, sem citar as nações envolvidas, além de um consenso para "fazer mais e mais rápido" no envio de armas a Kiev. Na conferência, o premier da República Tcheca, Petr Fiala, apresentou uma iniciativa dentro da União Europeia (UE) para que as nações se unam para comprar munições fora do continente europeu e destiná-las a Kiev. Seu homólogo holandês, Mark Rutte, disse que seu país contribuiria.

Prudência no Ocidente

Mas fornecer apoio é diferente de se envolver diretamente nos combates. Por isso, apesar de não descartar o envio de tropas ocidentais, Macron apontou que "não há consenso hoje para mandar forças terrestres de forma oficial, declarada e endossada", pelos governos ocidentais, o que foi reforçado de maneira contundente pelas autoridades nesta terça-feira. A fala do líder francês reverberou de maneira contrária ao esperado, causando inquietação até mesmo em seu país.

O primeiro-ministro eslovaco Robert Fico, cujos adversários o veem como próximo a Moscou, disse após a reunião que não havia consenso sobre isso, mas que há países "prontos para enviar seus próprios soldados para a Ucrânia". Já o premier da Suécia Ulf Kristersson, cujo país está prestes a ingressar na Otan após sinal verde da Hungria na segunda-feira, disse que o envio de tropas "não está em pauta no momento".

Logo após a invasão russa na Ucrânia, Estocolmo apresentou sua candidatura oficial, em conjunto com a Finlândia, rompendo com uma neutralidade histórica. Kristersson enfatizou que a Suécia está atualmente se concentrando no envio de "equipamentos avançados" para Kiev, depois que seu governo anunciou um novo pacote de ajuda militar no valor de US$ 682 milhões em 20 de fevereiro.

O premier sueco destacou que "não há nenhuma solicitação" da Ucrânia para tropas de países ocidentais no local, sem descartar essa possibilidade no futuro, e que os países têm diferentes tradições de "intervenção" internacional e "a tradição francesa não é a tradição sueca".

Na mesma linha, o primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, e o da República Tcheca disseram que não considerariam a possibilidade de enviar suas tropas para a Ucrânia, mas defenderam o "máximo apoio" ao esforço militar de Kiev. O mesmo foi dito pelo chefe do governo alemão, Olaf Scholz, que rechaçou a fala de Macron:

— O que foi acordado no início entre nós também se aplica ao futuro, ou seja, não haverá soldados em solo ucraniano enviados por países europeus ou países da Otan — disse o alemão a repórteres na cidade de Freiburg.

O porta-voz do governo britânico também anunciou que não há planos para enviar soldados à Kiev em grande número, alegando que o Reino Unido "já tem um pequeno número de funcionários no país apoiando as forças armadas da Ucrânia, inclusive para treinamento médico". A Espanha, por sua vez, disse que não está "de acordo" com a ideia de "enviar tropas europeias para a Ucrânia", embora reconheça o caráter "urgente" de "acelerar" o envio de material militar para Kiev.

A própria aliança descartou qualquer envio de forças terrestres para a Ucrânia. Um oficial da Otan afirmou à AFP nesta terça-feira que a aliança e seus membros "estão prestando assistência sem precedentes à Ucrânia" e que tem feito isso "desde 2014", quando a península da Crimeia foi anexada por Moscou.

Dentro da França, o líder da esquerda radical, Jean-Luc Mélenchon, chamou de "loucura" o envio de tropas para a Ucrânia, e a extrema direita disse que o presidente "perdeu a cabeça".

'Inevitabilidade' de confronto

Para além do consenso entre as autoridades europeias, há um ponto que impede a participação direta ocidental na guerra: como a Otan, a principal aliança militar do Ocidente, e que serve de principal sustentáculo militar para a Ucrânia, iria considerar os combates diretos entre suas forças e a Rússia? Quando questionado se a presença de tropas dos países membros da aliança em Kiev a levaria a um confronto direto entre a organização e a Rússia, o porta-voz russo respondeu:

— Nesse caso, teríamos que falar não de uma possibilidade, mas da inevitabilidade [de tal confronto]. — disse Peskov, alertando: — E esses países têm [...] que se perguntar se [o confronto com a Rússia] é de seu interesse e, acima de tudo, se é do interesse de seus cidadãos.

Pelo Artigo 5 do Tratado do Atlântico Norte, que rege a organização, caso um dos membros sofra um ataque, este será considerado como uma agressão a todos os demais integrantes, que têm o compromisso de agir de acordo com a ameaça. Eventuais mortes de soldados poderiam se enquadrar em um ataque direto à aliança, trazendo riscos de uma guerra total e direta entre a Otan e Moscou, o que poderia, em um cenário catastrófico, envolver armas nucleares.

Não oficialmente, há militares de países como os EUA dentro da Ucrânia, prestando consultorias e inspecionando entregas de equipamentos enviados por aliados.


Fonte: O GLOBO