Celular de mulher que seria casada com suposto integrante de organização criminosa paulista foi incluído na ferramenta de espionagem FirstMile, utilizada pelo órgão durante governo do ex-presidente
Em meio à prática de espionagem ilegal investigada pela Polícia Federal (PF), a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) monitorou, ao longo do governo passado, celulares em Juiz de Fora (MG), município em que Jair Bolsonaro foi alvo de um atentado à faca durante as eleições presidenciais em 2018. Segundo registros da ferramenta israelense FirstMile, usada pelo órgão entre 2019 e 2021, a operação foi apelidada de “Adelito” — uma referência a Adélio Bispo, preso pelo ataque contra Bolsonaro.
O esquema de monitoramento irregular por parte da Abin foi revelado pelo jornal O GLOBO em março do ano passado e, desde então, entrou na mira da PF. A investigação detectou, por exemplo, que políticos, advogados, jornalistas, autoridades e até aliados do ex-presidente foram bisbilhotados através da localização do celular, via FirstMile.
Um dos números pesquisados pela agência foi o de uma mulher presa por um ataque a quatro ônibus em Juiz de Fora. Ela seria casada com outro detento, membro do Primeiro Comando da Capital (PCC), principal facção paulista e uma das maiores do país.
Embora as investigações da PF tenham apontado que Adélio Bispo agiu sozinho, o entorno de Bolsonaro fomentou — e ainda fomenta — outras teorias a respeito do atentado. Uma das teses, apurada e descartada pelos agentes, era a de que o crime teria relações justamente com o PCC.
Adélio estava preso na penitenciária federal do Mato Grosso do Sul. Na última quarta-feira, porém, a 5ª Vara Federal Criminal de Campo Grande (MS) atendeu a um pedido da Defensoria Pública da União e determinou seu retorno para tratamento em Minas Gerais.
O ato de Adélio contra Bolsonaro gerou uma série de teorias, que iam desde ligações do criminoso com políticos adversários a conluios para que o crime fosse acobertado, além da versão relacionada ao PCC. No entanto, a conclusão da Polícia Federal de que ele agiu sozinho está amparada na análise exaustiva de imagens do ataque, de mensagens e da quebra de sigilos telefônicos e bancários de Adélio e de pessoas que pudessem ter alguma ligação com o episódio, não sendo constatado qualquer elemento que indicasse a participação de mais pessoas.
A maior parte das consultas pela Abin no FirstMile ocorreu de setembro a outubro de 2020, meses que precederam as eleições municipais. No período, foram realizadas mais de 35 mil pesquisas no sistema de espionagem, entre as mais de 60 mil computadas ao longo de três anos. Em nota, a Abin destaca que “é a maior interessada na apuração rigorosa dos fatos" e que "continuará colaborando com as investigações".
Passos desviados — Foto: Editoria de Arte
Política sob vigilância
Uma dessas operações de espionagem ocorreu entre junho e julho de 2019, quando o perfil “Pavão Misterioso” causou alvoroço nas redes sociais. A conta anônima no então Twitter (atual X) divulgava insinuações falsas sobre políticos de esquerda. Uma delas tratou de um suposto acordo para a venda de mandato, o que nunca se comprovou, do ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) para o seu sucessor na Câmara, David Miranda. Os posts foram insuflados pelo vereador Carlos Bolsonaro, que escreveu à época: “Vem mais pavão misterioso por aí?”.
Naquele mesmo período, integrantes da Abin passaram a monitorar os passos de Wyllys e Miranda, adversários da família Bolsonaro.
Em junho de 2019, foi salvo num sistema da agência o arquivo “pavão.pdf”. Tratava-se de reprodução de uma tela de pesquisas realizadas em nome de Wyllys, Miranda e do jornalista Leandro Demori, que trabalhava no site The Intercept, responsável por divulgar mensagens do ex-juiz Sergio Moro, então ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro, e procuradores da Operação Lava-Jato. Falsas acusações sobre Demori também foram publicadas no perfil do Pavão Misterioso.
No mês seguinte, em 6 de julho de 2019, foram feitas três consultas no FirstMile utilizando celulares vinculados a Wyllys e Miranda, que era casado com Glenn Greenwald, então jornalista do The Intercept.
Procurado, Wyllys afirmou que era visto como "inimigo político" pelo governo Bolsonaro:
— Estava convicto de que, com eles, corria enorme risco de vida além de ser implicado em dossiês falsos que destruíssem minha reputação. Antes mesmo de ele despontar como favorito às eleições, sua gente já me perseguia, assediava e ameaçava de maneira tão sistemática que só mesmo uma vigilância contínua poderia garantir tamanha perseguição e violência.
Jean Wyllys não foi o único monitorado pela Abin. Registros do FirstMile apontam que o sistema também foi utilizado para monitorar os passos de assessores parlamentares. Um dos alvos foi Alessandra Maria da Costa Aires, lotada no gabinete do senador Confúcio Moura (MDB-RO). No período da suposta espionagem, o parlamentar fez críticas a Bolsonaro por suas declarações na pandemia e votou contra a facilitação ao porte de armas.
Celulares vinculados a assessores de políticos de direita também foram pesquisados no FirstMile pela Abin. É o caso de Evandro de Araújo Paula, que trabalhou para a deputada federal Bia Kicis (PL-DF). No período da vigilância, entre abril e maio de 2020, o auxiliar legislativo participou do acampamento do grupo radical chamado “Os 300 do Brasil”, que se alojou na Esplanada dos Ministérios e lançou fogos de artifício contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
Hoje deputado federal, Gustavo Gayer (PL-GO) também foi alvo de monitoramento em região próxima ao Congresso. Durante a pandemia, ele ganhou popularidade entre bolsonaristas ao divulgar vídeos com informações falsas sobre medidas tomadas contra a Covid-19. Não há detalhes no sistema da Abin sobre o motivo da vigilância do atual parlamentar.
Outro alvo da Abin foi Giacomo Romeis Hensel Trento, monitorado pela agência em 2019. Ele foi secretário especial de Relações Governamentais da Casa Civil durante a gestão de Onyx Lorenzoni no governo Bolsonaro. Segundo dados do FirstMile, foram realizadas 146 consultas em número de celular vinculado a Trento com localização próxima à do STF.
Fonte: O GLOBO
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