Teerã promete retaliação, e o perigo de um erro de cálculo está sempre presente, mas nenhum dos lados quer um conflito de grande porte, ao menos por enquanto

O ataque israelense contra o complexo diplomático iraniano em Damasco, que matou militares graduados e funcionários dos serviços de inteligência, foi um incidente grave o que tem sido uma longa guerra não declarada entre Israel e Irã.

Os iranianos prometem uma grande retaliação, e o risco de um erro de cálculo está sempre presente. Mas diante do que está em jogo para os dois países, nem Israel nem Irã querem uma guerra aberta, mesmo no momento em que ambos querem avanços palpáveis na Faixa de Gaza e no Sul do Líbano.

Ao invés disso, o ataque é uma demonstração clara da natureza regional do conflito, com Israel tentando diminuir e conter os aliados do Irã que ameaçam sua segurança por todos os lados. É algo por vezes chamado de “guerra entre as guerras”, com Israel e Irã como os principais adversários, atuando nas sombras de hostilidades mais aparentes no Oriente Médio.

Os iranianos mortos na segunda-feira há décadas atuavam na orientação e no fornecimento de armas para forças aliadas em Gaza, Líbano, Síria, Iraque e Iêmen, como parte do esforço declarado do Irã para desestabilizar e até destruir o Estado judeu.

Para o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que teoricamente aprovou o ataque, a eliminação bem sucedida dos militares iranianos foi um golpe político. Ele vem no momento em que protestos pedindo sua renúncia ganham força, com a guerra contra o Hamas se arrastando e os reféns ainda em cativeiro em Gaza.

Ao demonstrar sua capacidade de se infiltrar na inteligência iraniana, Israel tenta atingir o lado operacional dos aliados iranianos, o chamado Eixo da Resistência, com o objetivo de afetar suas capacidades e impedir ataques, mesmo em meio à guerra em Gaza.

Bombeiros tentam apagar focos de incêndio em prédio do consulado iraniano em Damasco — Foto: LOUAI BESHARA / AFP

Desde o início do conflito, em outubro do ano passado, Israel começou a atingir altos integrantes do Estado iraniano responsáveis pelos laços com as forças aliadas, ao invés de ações contra as entregas de armas, afirmou Ali Vaez, diretor do International Crisis Group para o Irã.

Mas não importa a quantidade de generais experientes eliminados por Israel, uma vez que “ninguém é insubstituível no sistema iraniano”, afirma Vaez.

— O Irã sabe que esse é um jogo perigoso, e que há um preço a ser pago.

Alguns temem que o preço poderá ser pago pelos aliados de Israel. Ralph Goff, ex-integrante da CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA) que serviu no Oriente Médio, disse que o ataque de Israel foi “incrivelmente inconsequente”, e que os “israelenses estão escrevendo cheques que o Centcom (Comando Militar Central dos EUA, responsável pela região) terá que pagar”.

— O único resultado disso será a escalada por parte do Irã e seus aliados, o que é muito perigoso — disse Goff, citando os riscos às forças americanas baseadas no Oriente Médio, que podem ser atacadas pelas milícias aliadas de Teerã.

'Senhor segurança'

Netanyahu tem enfatizado há anos que o Irã é o principal inimigo de Israel, e que o ataque contra a embaixada poderia “reabilitar sua reputação como ‘senhor segurança"', disse Sanam Vakil, diretora do programa para o Oriente Médio e Norte da África da Chatham House. Mesmo assim, pode não ser suficiente, afirmou, diante do quadro de estagnação em Gaza, com o Hamas longe de ser derrotado e com os aliados iranianos ainda com força.

O Irã prometeu retaliação e vingança ao que chamou de ataque sem precedentes, mas desde o dia 7 de outubro, “o Irã deixa claro que não quer uma guerra regional”, afirma Vakil.

— Ele (Irã) vê esse conflito com Israel como algo de longo prazo.

Integrantes do governo americano não acreditam que o Irã tenha incitado o ataque do Hamas, ou mesmo que tenha sido informado com antecedência. Mesmo assim, o Irã vê Gaza como “uma vitória para eles, porque isola Israel e deixa o país na defensiva na região e no mundo”, afirma Suzanne Maloney, diretora do programa de política externa na Brookings Institution.

A guerra em curso e seu impacto sobre os civis tornará “praticamente inconcebível a visão do Oriente Médio que Israel, os EUA e os sauditas planejavam antes de 7 de outubro”, afirmou Maloney, citando o plano que tinha como ponto central o reconhecimento de Israel pelas nações árabes, se opondo à crescente influência regional.

Mesmo assim, afirma Vakil, “será difícil para o Irã ignorar o ataque”, uma vez que “foi um ataque direto contra seu território”, o prédio da embaixada, e que matou três comandantes graduados da Força Quds, um serviço militar e de inteligência da Guarda Revolucionária.

O Irã afirma que o ataque israelense matou o general Mohammad Reza Zahedi, ao lado de seu subcomandante, um outro general e outras quatro pessoas, incluindo integrantes da Jihad Islâmica Palestina, um grupo ligado a Teerã e que está lutando em Gaza.

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A morte de Zahedi, encarregado das relações militares com a Síria e o Líbano, está sendo considerado o mais importante assassinato de uma liderança iraniana em anos. Yaakov Amidror, um ex-conselheiro de segurança nacional de Israel, disse que o ataque foi “um grande impacto às capacidades imediatas do Irã na região”. Ele supervisionou as tentativas do Irã de criar um “círculo de fogo” ao redor de Israel, através de milícias aliadas, ao mesmo tempo em que mantinha um envolvimento iraniano próximo, diz Amidror.

Mas como e quando o Irã vai escolher retaliar pode elevar os riscos hoje em jogo. O exemplo recente mais óbvio foi a resposta ao assassinato do general Qassem Soleimani, comandante da Força Quds, em um ataque com um drone dos EUA em Bagdá, há quatro anos. Naquela época, o Irã lançou um grande ataque com mísseis a uma base usada pelos EUA no Iraque, mas apenas depois de alertar os americanos com antecedência. Não houve vítimas entre os americanos, mas cerca de 100 militares sofreram danos cerebrais ligados aos impactos, afirmou o Pentágono posteriormente.

No mesmo dia, um Irã ainda em alerta militar máximo derrubou um avião comercial ucraniano, matando 176 pessoas a bordo, acreditando se tratar de uma aeronave inimiga.

— Mas uma das lições da morte de Soleimani foi que mesmo que alguém tão crítico saia de cena, a rede e a redundância que o Irã estabeleceu com esses grupos permanece viva e bem — disse Maloney.

Recentemente, o Irã tentou reduzir as tensões em suas relações com os EUA, depois de um ataque com drones contra uma base usada pelos americanos na fronteira entre Síria e Jordânia deixar três militares mortos.

Desta vez, como se trata de Israel, o Irã pode estar disposto a riscos maiores. Outras escolhas podem ser feitas, como um ataque cibernético, um ataque de mísseis vindo do Líbano, o assassinato de um comandante militar, uma ação contra uma embaixada ou novos passos para acelerar o programa nuclear.

Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, durante discurso na Assembleia-Geral da ONU — Foto: DON EMMERT / AFP

A última opção seria uma resposta direta a Netanyahu, que há muito tempo fala sobre os perigos de um Irã armado com bombas nucleares, e que promete fazer de tudo para evitar esse quadro. O Irã sempre insistiu que seu programa nuclear é puramente pacífico, mesmo depois de enriquecer urânio em níveis próximos aos exigidos para uso militar.

O Irã também pode agir em seu próprio tempo. Amidror afirma duvidar que o ataque possa levar a um atrito maior entre Israel e Irã, como uma guerra total envolvendo o Hezbollah ao longo da fronteira com Israel.

— Os interesses deles (iranianos) não mudaram imediatamente. Eles querem vingança, mas isso é algo completamente diferente — afirmou o ex-conselheiro de segurança nacional israelense, apontando que a resposta pode não se limitar apenas à região.

Ele citou o exemplo do ataque contra a embaixada israelense em Buenos Aires, em 1992, realizado pela Jihad Islâmica e que deixou 29 mortos. O atentado, afirma, foi uma resposta ao assassinato do líder do líder do Hezbollah, Abbas al-Musawi, morto por mísseis israelenses em fevereiro daquele ano no sul do Líbano.


Fonte: O GLOBO