Em “O Paciente Inglês”, a guerra é o pano de fundo mais adequado para se falar sobre a destruição que antecede a glória.
Porto Velho, RO. “O Paciente Inglês” é mais uma das histórias perversamente encantadoras sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) — com seus próprios detalhes, instigantes e memoráveis, por óbvio. Perito em arrancar de narrativas literárias imagens e sentimentos que a fria página dos livros muitas vezes sufocam, Anthony Minghella (1954-2008) faz do romance homônimo do canadense Michael Ondaatje, publicado em 1992, uma trama ambivalente de ruína moral, amor e autodescobertas de personagens imersos em dores que atravessam os anos, como se à espera de uma comoção ainda maior para se refazerem.
Minghella vê nessas figuras sombrias, mas envoltas pelo feixe de luz salvador que insiste em guiá-las, a ânsia por encontrar sentido na vida ao passo que o mundo treme entre uma e outra bomba. Em “O Paciente Inglês”, a guerra é o pano de fundo mais adequado para se falar sobre a destruição que antecede a glória.
A estética é um componente indissociável do eixo mesmo da trama. Minuto após minuto, o espectador reconhece com mais nitidez o David Lynch de “Duna” (1984) nas areias de algum lugar entre o Egito e a Líbia onde cai o avião do conde Laszlo de Almásy, o historiador vivido por Ralph Fiennes que cruza o céu da África Setentrional até ser atingido por um grupamento de mercenários.
Almásy parece sempre a um triz de ser devorado pelas criaturas pantagruélicas que habitam o subsolo na ficção científica de Lynch, nascida da prosa delirante de Frank Herbert (1920-1986) na série publicada entre 1965 e 1985, até ser resgatado por piedosos beduínos e encaminhado ao um hospital de campanha, onde uma enfermeira abnegada dá conta de dezenas de feridos.
Hana é a própria encarnação da santidade e da sanidade possíveis em meio ao caos de um conflito armado de dimensões planetárias, e no momento em que a mocinha de Juliette Binoche encontra o tipo misterioso incorporado com vistosa desenvoltura por Fiennes abre-se a dimensão paralela que vai ligando as pontas soltas do enredo.
O diretor urde flashbacks que explicam a jornada errante de Almásy — que, na verdade, não tem nada de inglês —, e entra na vida cheia de glamour de seu anti-herói, um inveterado casanova que se jacta de nunca ter caído vítima de paixões avassaladoras, até conhecer Katharine, a esposa do diplomata Geoffrey Clifton. Minghella supera todas as expectativas ao conseguir conferir forma e método (sem prescindir do lirismo) às descrições concêntricas de Ondaatje e juntar esses dois núcleos, o do passado colorido, vibrante, caloroso, e o do presente, sépia, monocórdio, tépido, ajudado pela fotografia certeira do mestre John Seale.
No primeiro, o anticasal formado por Kristin Scott Thomas e Colin Firth, amigos de uma vida inteira que sabe-se lá por que, resolvem se tornar marido e mulher, cruza a trajetória de Almásy por razões que só mesmo o destino é capaz de explicar; neste, o conde sobrevive às custas da caridade de estranhos, e nem acharia isso exatamente ruim, não fosse David Caravaggio também cair do azul, feito ele na abertura.
Caravaggio, da mesma forma que Almásy um sujeito cheio de camadas avessas à transparência solar da verdade — a começar pelo próprio nome, quiçá uma homenagem ao pintor italiano Michelangelo Merisi (1571-1610) —, instiga no público urgências quanto à identidade de seu antípoda, que convalesce eternamente numa cama nos esqueletos de uma velha fazenda em Livorno, à beira da estrada que leva a Florença, escutando da boca de Hana as crônicas de Heródoto (485 a.C. — 404 a.C.) num volume encadernado em couro que trazia consigo. Até que nenhum dos dois aguenta mais.
As solidões desses três homens, Almásy, Clifton, Caravaggio, e de Hana e Katharine, é o fio com que Minghella costura as impressões de Ondaatje acerca da Segunda Guerra. “O Paciente Inglês” é um tratado sobre a agonia de existir, onde cada qual se defende com o quinhão de sonho que lhe cabe. E parece que nunca sonhamos o bastante.
Filme: O Paciente Inglês
Direção: Anthony Minghella
Ano: 1996
Gêneros: Romance/Guerra
Nota: 10
Fonte: R7
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