Queda é percebida em setores distintos como supermercados a eletrodomésticos. Para consultorias, recuperação no consumo só começará a ser sentida nos primeiros meses de 2025

Como raramente na história recente, a crise que o consumo na Argentina enfrenta tem um tom democrático: não perdoa nenhum setor do mercado doméstico. Sofrem desde os supermercados até itens que são dependentes do crédito, como os eletrodomésticos e automóveis, passando pelos restaurantes — que sentem falta dos clientes brasileiros, afastados pela inflação em dólares — e as farmácias, que têm uma demanda de primeira necessidade.

Se há algo que caracteriza o consumo desses primeiros meses de 2024 é a dificuldade de encontrar um negócio vinculado ao mercado interno que possa mostrar números positivos.

Embora o Índice de Preços ao Consumidor tenha recuado nos últimos meses (passou de 25,5% em dezembro para 11% em março), a profunda recessão que a economia da Argentina enfrenta é mais forte entre os setores e indústrias ligados à evolução dos salários e dos níveis de emprego.

-- Estamos diante de um processo inédito, com um ajuste que era considerado inevitável pelos consumidores e que está levando todas as empresas a redefinir suas estratégias de negócios -- explica Guillermo Oliveto, titular da consultoria W.

A acentuada desaceleração da inflação — há a esperança no governo de que abril feche em um dígito — representa um sinal mais do que positivo para as empresas que vivem do mercado interno. Mas na medida em que a queda no ritmo dos aumentos não se traduza numa melhoria do poder de compra dos salários, o panorama continuará complicado.

Em seu último relatório, a consultoria MAP especifica que, em média, o consumo acumulou uma queda de 10% nos primeiros três meses do ano. Para 2024, a projeção é de recuo de 6%, com uma recuperação que só começará a ser sentida com força nos primeiros meses de 2025.

— O consumo privado continua deprimido, com um efeito muito negativo nos primeiros seis meses do ano, que poderá ser moderado a partir do segundo semestre na medida em que a inflação desacelera com alguns setores iniciando reação — explica Juan Pablo Ronderos, sócio-fundador da MAP.

A recessão é sentida com força em alimentos e medicamentos. As vendas de produtos da cesta básica — alimentos, bebidas, artigos de higiene pessoal e de limpeza — caíram 10% em volume.

— Começamos a ver uma maior frequência de compra, em diferentes canais, mas com uma redução na quantidade de produtos adquiridos em cada visita. Da mesma forma, nos últimos meses, começaram a ganhar participação as segundas marcas e as marcas próprias, como uma estratégia para adquirir um produto mais barato, mas sem resignar em qualidade — explica Martín Lemos, gerente geral da GDN Argentina, a empresa que ficou com o negócio do Walmart no país e opera as marcas ChangoMâs, Punto Mayorista e a plataforma de e-commerce MâsOnline.

As farmácias também enfrentam uma queda de dois dígitos no primeiro trimestre do ano.

— No nosso caso, as vendas em volume caíram uma média de 11%, mas nas áreas mais carentes a queda chega a 13%, inclusive com o abandono de tratamentos prolongados — explica Néstor Pedraza, dono da cadeia de farmácias Puntofarma.

Comércio eletrônico também sofre

A crise não perdoou nem mesmo o comércio eletrônico, que até agora havia se mantido à margem da crise argentina.

— No primeiro trimestre deste ano vimos uma queda de 5% nas vendas em relação ao mesmo período do ano anterior. No entanto, observamos uma redução menor do consumo no e-commerce em comparação com o varejo físico, e, em particular, estimamos que a redução no consumo em nossa plataforma é metade da do mercado geral — observou Adrián Ecker, presidente do Mercado Livre na Argentina.

O impacto da soma da recessão com a inflação acima de 250% ao ano não só se traduziu em uma queda nas vendas, mas também em uma mudança nos hábitos de compra dos consumidores, disse Ecker.

— Há uma migração do consumo para itens de menor valor, por um lado impulsionado pela mudança no mix de categorias e, por outro lado, por uma maior participação de produtos mais baratos nas vendas de uma mesma categoria. Também vemos um crescimento no número de visitas à plataforma. Só que hoje os usuários são mais cautelosos na hora de fazer a compra, reduzindo a despesa e gastando mais tempo comparando opções — explicou Ecker.

Vendas de eletrodomésticos entre as maiores quedas

A área de insumos para a construção acumulou nos primeiros três meses do ano queda de 32% em suas vendas, de acordo com a medição do Índice Construya. Na lista dos setores mais atingidos pela recessão também estão os eletrodomésticos: as vendas da categoria hoje estão em média 40% abaixo de 2023. As categorias mais atingidas são consoles de videogame, celulares e geladeiras, com baixas entre 30% e 55%.

— O que vemos no consumo é que há muita busca por produtos de marcas de preço de entrada. E também há muita ativação em descontos para conseguir mais rotatividade — assegura Juan Manuel Almeida, gerente de Marketing da rede de eletrodomésticos Cetrogar.

A área de vestuário também mostra uma queda de 30%.

— Retomamos ações como as 12 parcelas sem juros, aproveitando a baixa na taxa de juros. Estamos acostumados a nos adaptar à mudança, porque a marca nasceu há 25 anos, no meio da crise do final dos anos 90 — explica Lucas Farrell, diretor da Prüne, marca especializada em carteiras, sapatos e jaquetas de couro.


Fonte: O GLOBO