Seis anos após a morte de Abdul Raziq, chamado de 'único aliado real' contra o Talibã, surgem os relatos sobre a incontável sequência de abusos comandadas por ele no país
Porto Velho, Rondônia - O comboio cortou o território do Talibã, um deserto cheio de pedras. Em uma mesquita na área, a polícia ordenou que todos se reunissem: o comandante estava aqui. Dezenas de pessoas se juntaram na praça para ouvir Abdul Raziq, um dos maiores aliados dos EUA contra a milícia, enquanto ele fazia gestos para dois prisioneiros que trazia com sua comitiva.
Ambos estavam com as mãos atadas, e alguns dos homens que acompanhavam Raziq abriram fogo. Diante do silêncio que se seguiu, o comandante se dirigiu aos populares:
— Vocês vão aprender a me respeitar e a rejeitar o Talibã — afirmou, em 2010, de acordo com testemunhas e parentes dos homens mortos. — Porque eu voltarei e farei isso de novo, e nada vai me impedir.
Por anos, os militares americanos viam Raziq como um parceiro ideal no Afeganistão, talvez como o único aliado real contra o Talibã. Ele dominava a região de Kandahar, no período em que os EUA tiveram seu maior contingente no país, e chegou ao posto de tenente-general graças ao apoio americano. Oficiais vindos de Washington o visitavam e elogiavam sua coragem e a forma como lutava, assim como a lealdade de seus homens, todos treinados e armados pelos EUA.
Abdul Raziq, chefe da polícia de Kandahar, em foto de 2015 — Foto: Bryan Denton/The New York Times
Mas para muitos civis, Raziq era algo diferente: o monstro dos EUA. E isso ajuda a explicar por que os americanos perderam a guerra.
Por quase duas décadas, o público nos EUA viu apenas uma parte do conflito. Boa parte do Afeganistão estava fora de alcance para estrangeiros, e agora que a guerra acabou, o Talibã não está mais usando bombas na beira das estradas, muitos trocaram seus fuzis AK-47 pelas mesas de repartições, e as histórias desse período começam a surgir.
A milícia cometeu incontáveis atrocidades contra civis, incluindo ataques suicidas, assassinatos e sequestros. Mas foi um erro “apoiar um criminoso muito mau porque ele era eficaz no combate a criminosos ainda piores”, disse o general John Allen. Ele alega ter tentado reduzir o grau de cooperação com Raziq quando supervisionou as forças de coalizão entre 2011 e 2012.
Embora as táticas contra o Talibã tenham tido algum sucesso, dando a Raziq a admiração até de quem não o apoiava, havia um custo alto. O grau de violência permitiu que os talibãs transformassem a crueldade em uma ferramenta para conseguir novos recrutas. Muitos passaram a rejeitar o governo apoiado pelos EUA e tudo que ele representava.
Mas não havia ninguém melhor para o serviço, disse o coronel Robert Waltenmeyer, que trabalhou com Raziq. Quando os EUA mandaram dezenas de milhares de soldados ao Afeganistão em 2009, para tentar controlar o Sul, Raziq foi crucial.
Para determinar a extensão dos abusos, o New York Times analisou mais de 50 mil queixas por escrito às autoridades de Kandahar, entre 2011 e 2021, e encontrou detalhes básicos de cerca de 2,2 mil casos de desaparecimentos suspeitos. Depois, foram feitas visitas a centenas de casas, e a produção identificou cerca de mil pessoas dadas como desaparecidas, mortas ou sequestradas pelas forças do governo. Ao fim, foram confirmados 368 casos de desaparecimentos forçados e dezenas de execuções extrajudiciais — esses casos foram corroborados por testemunhas e documentos oficiais.
‘A obra de Raziq’
Fazul Rahman correu para a loja de motos assim que recebeu o telefonema. Seu irmão, um mecânico, tinha sido sequestrado. Em pânico, os funcionários disseram que três homens jogaram Ahmad, de 28 anos, dentro de um carro e fugiram.
Desesperado, Fazul juntou alguns anciãos e foi para uma delegacia. Lá, os policiais negaram ter prendido seu irmão, e ele seguiu para o palácio do governador apoiado pelos EUA, onde havia uma fila de pessoas com queixas semelhantes: o que o governo fez com seus entes queridos?
Fazul Rahman, que há anos busca informações sobre seu irmão, Ahmad, capturado em Kandahar — Foto: Bryan Denton/The New York Times
Depois de fazer o boletim, Faizul se perguntou se havia sido muito duro. A polícia havia capturado pessoas com base em suspeitas, e o que poderiam fazer com alguém que a estava acusando de sequestro? Mas havia uma outra força por trás da denúncia: sua mãe, Malika.
Mulheres raramente fazem queixas públicas no Afeganistão, especialmente no Sul. Mas Fazul e Ahmad eram tudo que Malika tinha: o pai deles havia morrido de câncer havia mais de duas décadas, e ela os criou sozinha.
— Por meses, dia após noite, fui à polícia e ao palácio do governador esperar para ser ouvida — afirmou.
Frustrado pela falta de respostas, um funcionário do governo disse a Fazul que reunisse uma lista com os nomes dos desaparecidos: inicialmente eram 17 pessoas. A lista, que cresceu posteriormente, começou a circular, mas as autoridades diziam que não podiam fazer nada.
Malika, mãe de Ahmad que há anos tenta descobrir informações sobre seu filho capturado em Kandahar — Foto: Bryan Denton/The New York Times
Finalmente, Fazul conseguiu uma audiência com o governador de Kandahar, ao lado de mães e parentes dos desaparecidos. Em um determinado momento, a mãe de Fazul acusou o governante de corrupção, covardia e de roubar seu bem mais valioso, a ponto de receber uma reprimenda dos guardas.
Mesmo assim, a iniciativa valeu a pena; a lista foi parar na mesa de Raziq, que os chamou para uma reunião.
A outra guerra
Desaparecimentos não eram novidade em Kandahar, um local que por quatro décadas viveu a guerra. Até Raziq perdeu alguém. Seu pai era motorista, que fazia viagens frequentes ao Paquistão. Em uma delas, sumiu no deserto, sem deixar pistas.
Sua família, da tribo Achakzai, culpou seus rivais, os Noorzai. As duas estavam envolvidas em uma disputa violenta de décadas, mesmo antes da chegada do Talibã ao poder.
E isso era algo que os americanos não entendiam: uma dinâmica tribal e familiar, não apenas o Talibã, movia a guerra de Raziq. Na praça onde ele executou os prisioneiros em, a maior parte das pessoas era da tribo Noorzai.
Em 2010, conforme o Talibã avançava no Sul, Raziq continha os insurgentes perto de seu distrito natal, Spin Boldak. Os comandantes americanos sabiam que ele era corrupto e que mantinha um esquema similar ao da máfia na fronteira. Também era suspeito de ter laços com o comércio de papoula.
As alegações de execuções extrajudiciais o acompanhavam há anos, desde os primeiros dias da invasão americana. Anciãos Noorzai chegaram a reclamar aos militares dos EUA, mas foram ignorados. Após o assassinato do chefe de polícia de Kandahar, em 2011, Raziq assumiu o cargo, se tornou general e indicou pessoas de sua tribo para funções-chave.
Depois de dois meses, os americanos suspenderam as transferências de prisioneiros para as forças de segurança de Kandahar, em meio a relatos de abusos e execuções. Mesmo assim, o apoio a Raziq foi mantido.
Convidados do general
Em sua base, Raziq deu as boas vindas a Fazul e outros parentes. Como não sabia ler, seu secretário leu os nomes na lista em voz alta. E esse não foi um encontro fácil de conseguir: naquele momento, o Talibã havia tentado matá-lo tantas vezes que tinha virado motivo de piada.
Pessoalmente, ele era gentil, como atestam alguns dos presentes no encontro, e deu palavra a todos os presentes. No final, foi a vez do próprio falar. Ele se dirigiu diretamente a alguns dos parentes, incluindo Shah Mohammad, cujo irmão, Neda, estava na lista. O general disse que Neda estava envolvido no assassinato de policiais, algo que sua família duvidava: ele era vendedor de legumes no mercado.
Cova próxima a um posto de controle perto do distrito de Boldar, na província de Kandahar — Foto: Bryan Denton/The New York Times
Antes do fim do encontro, o general se virou para Seema, cujo filho adotivo, Daud, havia desaparecido meses antes. Ele disse que o jovem retornaria, sem dar explicações. Pouco depois, ele estava livre.
Mais tarde, Daud contou como foi mantido em uma cela escura por meses, dentro de um centro de detenção clandestino. Ele foi agredido e abusado com frequência, até que, por ordem do general, foi transferido para uma prisão “oficial” antes de ser libertado. Ele disse às outras famílias não ter visto os demais desaparecidos.
O avanço dos insurgentes
O choque veio no dia 18 de outubro de 2018, quando Raziq foi morto por um talibã que se infiltrou na guarda pessoal dele. A impunidade e criminalidade que ele fomentou se intensificou depois de sua morte, corroendo Kandahar por dentro. Com o fortalecimento do Talibã, o roubo de salários e armas das forças do governo devastou a moral das tropas, assim como as batalhas internas entre oficiais.
O grupo de Fazul rezava por uma vitória dos insurgentes, na expectativa de que, uma vez derrubado o governo, poderiam descobrir o destino de seus parentes. E com a retirada dos EUA em 2021, o Talibã foi de prisão em prisão abrindo as celas.
Talibãs prendem bandeira do grupo em veículo após orações de sexta-feira em Cabul — Foto: Victor J. Blue/The New York Times
Milhares de pessoas se dirigiram à cidade de Kandahar, com Fazul entre elas, para invadir as repartições do governo. Pouco depois, ele e outros grupos foram para Spin Boldak, onde Raziq iniciou sua trajetória. Muitos observavam a multidão em busca de seus entes queridos, mas o irmão de Fazul não estava entre os detentos saídos das prisões.
Desde o colapso do governo pró-EUA, covas coletivas foram descobertas em Kandahar, e parentes dos desaparecidos têm feito uma peregrinação a locais perdidos no deserto, necrotérios e arquivos de fotos de esqueletos. Mas não há um esforço conjunto de busca. Depois de muitos anos de pressão americana, os promotores do Tribunal Penal Internacional estão deixando de lado investigações sobre abusos cometidos pelas forças apoiadas pelos americanos. A ONU se concentrou nas denúncias de violações do novo regime Talibã
— Ainda tenho esperança de que ele retorne, apesar de saber que provavelmente está morto — disse Malika, mãe de Fazul e Ahmed. — Minhas lágrimas não secaram desde que ele sumiu.
Fonte: O GLOBO
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