Anna Saicali converteu imóvel em frente à praia do Leblon em bem de família, o que impede que ele seja alvo de execuções judiciais

A ex-diretora da Americanas Anna Ramos Saicali durante depoimento à CPI da Americanas na Câmara dos Deputados em setembro de 2023 — Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

Porto Velho, Rondônia -
A ex-executiva das Lojas Americanas Anna Christina Ramos Saicali, apontada nas investigações do Ministério Público Federal (MPF) como uma das mentoras do esquema de fraude que forjou os balanços da empresa para cobrir um rombo de R$ 25,7 bilhões, converteu um apartamento de luxo na praia do Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, em um bem de família para residência própria seis dias após a revelação do desfalque bilionário.

Documentos do 2º Cartório de Registro de Imóveis do Rio de Janeiro mostram que a executiva protocolou a mudança no dia 16 de janeiro de 2023, apenas cinco dias após a empresa comunicar em fato relevante a existência de “inconsistências contábeis” no balanço da empresa já na gestão de Sergio Rial. Na ocasião, a executiva era CEO da AME, braço digital do grupo.

O principal motivo para transformar um imóvel em bem de família é torná-lo um bem impenhorável, ou seja, protegê-lo de eventuais execuções e penhoras judiciais para sanar dívidas ou outros passivos legais. O recurso é previsto por lei e foi criado para proteger o direito à moradia de famílias, mas a ordem cronológica do caso de Saicali sugere que o real objetivo foi proteger o apartamento com vista para o mar com a iminente investigação sobre o desfalque da Americanas.

O apartamento de quase 200 metros quadrados fica em um ponto nobre da orla do Leblon e foi avaliado em R$ 11,2 milhões na ocasião da alteração no registro. Ele pertence a Saicali desde 2009. Procurada para comentar a alteração, a equipe de defesa da executiva não respondeu até o fechamento deste texto. O espaço segue aberto para manifestação.

Saicali chegou a ter um mandado de prisão expedido em junho durante a operação Disclosure da Polícia Federal (PF), mas estava em Portugal. Ela se apresentou à Justiça no país europeu três dias depois, apenas após ter sua prisão revogada. Ao desembarcar no Brasil, ela teve seu passaporte retido. A decisão judicial também prevê que a executiva permaneça no Rio de Janeiro durante as investigações e a proíbe de deixar o país.

O jornal Folha de S. Paulo revelou em junho passado que Saicali transferiu para seu filho quotas de uma empresa em seu nome no valor de R$ 13 milhões no apagar das luzes de 2022, 19 dias antes da divulgação do rombo pela empresa. Na ocasião, a defesa da executiva alegou que a mudança não teve o intuito de ocultar seu patrimônio e “decorreu de planejamento sucessório por motivos de saúde”.

Segundo a apuração da Polícia Federal, o ex-CEO da Americanas Miguel Gutierrez, que era chefe de Saicali e é acusado de atuar com ela e outros diretores da Americanas para fraudar os números divulgados para o mercado, também fez uso do expediente do bem de família.

Gutierrez teria atuado para blindar seu patrimônio com remessas bilionárias para offshores em paraísos fiscais e a transferência de seus imóveis para empresas no nome de familiares. O único apartamento que permaneceu em seu nome se tornou impenhorável após mudança registrada em cartório.

A movimentação do ex-CEO aconteceu ainda em 2022, antes do esquema fraudulento vir à tona.

Como mostramos no blog em junho, a alta cúpula da Americanas tentou encobrir rastros da fraude antes da transição para a gestão Rial.

Os delatores Marcelo Nunes (então diretor executivo financeiro) e Flávia Carneiro (superintendente da Controladoria da Americanas) relataram ao MPF que Gutierrez realizou duas reuniões assim que soube que seria substituído no comando da empresa, em agosto de 2022. Os encontros contaram com a presença de Saicali e, na segunda ocasião, os executivos discutiram como maquiar a fraude contábil para ludibriar o futuro CEO junto de outros diretores.

Ainda de acordo com o MPF, a meta do grupo era levantar R$ 15 bilhões “mediante estratagemas contábeis falsos”. Carneiro, então, consolidou o plano em um arquivo que detalhou os riscos e a documentação necessária para cada "ajuste" realizado para esconder as fraudes. A versão final do balanço da empresa, já maquiado, foi apresentada a Sergio Rial em 27 de outubro de 2022.

O planejamento também foi confirmado por trocas de e-mail e mensagens de WhatsApp fornecidas pelos delatores à Justiça. O esquema só foi descoberto porque, depois dessa apresentação, Marcelo Nunes decidiu alertar informalmente o executivo André Covre, que se preparava para assumir o cargo de CFO da Americanas na gestão de Rial, sobre as fraudes.

De acordo com o MPF, Nunes subsidiou a dupla com outros documentos que permitiram aos novos dirigentes o mapeamento de outras irregularidades nas finanças da companhia, que foram comunicadas oficialmente ao mercado em 11 de janeiro de 2023.


Fonte: O GLOBO